O exagero nos efeitos visuais e no uso de chroma key escancaram que houve preocupação com a estética, mas nem tanto com o roteiro.
Não são poucos os produtos reciclados de Hollywood, e a Disney já se convenceu que refazer os clássicos é um caminho certeiro. Em 2010, “Alice no País das Maravilhas” funcionou como precursor. Não obstante seu lucro significativo, só agora chega uma pseudo-continuação.
“Alice Através do Espelho” leva Alice novamente ao País das Maravilhas, desta vez para ajudar seu amigo, o Chapeleiro Maluco, deprimido e correndo o risco de morrer em razão de uma descoberta sobre o seu passado. A tarefa de Alice é voltar no tempo (substantivo comum) e impedir um evento trágico referente à vida do amigo – para isso, porém, precisa convencer o Tempo (substantivo próprio, personagem) a permitir a empreitada.
O código hermenêutico do roteiro é obsoleto, somando o clichê da viagem no tempo à poderosa (porém esgotada) fábula de Lewis Carroll. Com o argumento de história de perseguição, segue a estrutura narrativa clássica de três atos cujos plot points (alguns twists que jamais surpreendem de modo significativo) não ousam nem inovam.
É novamente (como em 2010) Linda Woolverton a roteirista – o ápice da sua carreira foi na década de 1990, com “A Bela e a Fera” e “O Rei Leão”. Ignorando os furos de roteiro (inclusive no desfecho), os trocadilhos com o Tempo são ineficientes, e nada do que ocorre chega a cativar. Seu equívoco foi investir em demasia nas explicações sobre o pretérito diegético, obstruindo um desenvolvimento narrativo para além do longa de 2010.
Ou seja, ao invés de continuar o filme anterior com um enredo inovador, o que o roteiro faz agora é praticamente não progredir para priorizar lições de moral (escancaradas e óbvias, em sua maioria) e esclarecimentos sobre as personagens (expor seu passado para justificar seu presente). A elaboração é tão falha que a realidade de Alice é mais interessante que a fantasia de Wonderland.
Com efeito, tanto Mia Wasikowska quanto sua Alice evoluíram muito. A atriz percebeu com êxito as nuances da personagem, que está agora mais audaciosa e segura de si. Sua personalidade amadurecida reverbera desde o enfrentamento de um conselho composto de homens (quase todos bem mais velhos) até a escolha de um vestido chamativo para um baile (o feminismo do primeiro ato é salutar, mas breve em demasia). É por isso que ela aceita a missão com alguma facilidade, mesmo que de forma egoísta – afinal, o intento é alterar o passado sem se importar com as consequências colaterais (efeito borboleta).
Dos coadjuvantes, destaque negativo é a Rainha Branca de Anne Hathaway, extremamente insossa. Os demais mantêm o nível, como Helena Bonham Carter (Rainha Vermelha), ou aprimoram o trabalho, como Johnny Depp (acertadamente atuando como um Chapeleiro Maluco mais introspectivo e deprimido, compatível com o contexto). Infelizmente, a participação de Absolem é pequena, registrando pouco a voz imponente do já saudoso Alan Rickman. Por fim, Sacha Baron Cohen é um desperdício: seu papel (o Tempo) é desnecessário na trama – hipoteticamente retirado, não faria diferença na narrativa (até porque seu poder reside em um objeto que pode ser usado por quem o porta) –, além de incoerente (infinito e imortal, mas definha sem a CronoEsfera). A relevância do Tempo é gerar piadas sem graça e funcionar como deus ex machina no terceiro ato.
A saída de Tim Burton e seu viés sombrio deram lugar para a aquarela eclética de James Bobin. O diretor é impecável no trabalho de proporções (notoriamente no primeiro ingresso da protagonista em Wonderland pelo espelho), e competente no 3D (as cenas de chuva e tempestade ajudam). Nesse sentido, o design de produção primoroso (destaque para a arquitetura complexa na residência do Tempo) quase ofusca a insaciável e incessante utilização de chroma key. A discrição sonora corrobora com a tese da primazia do visual.
“Alice Através do Espelho”, em análise holística, representa avanço em relação a “Alice no País das Maravilhas”. Contudo, é um filme reciclado, que exagera nos efeitos visuais em detrimento de um roteiro bem elaborado. O enredo serve apenas como pretexto para a estética, que é bela, mas não memorável.