Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 07 de maio de 2016

Nise – O Coração da Loucura (2015): amor como vocação

Produção pequena, mas honesta, contando com atuações dedicadas, constrói uma boa cinebiografia de uma personagem absolutamente relevante de nossa história

nise-o-coracao-da-loucura_POSTERMesmo tendo se tornado figura anedótica de nossa internet, Gloria Pires ainda é uma de nossas atrizes mais relevantes, tanto na televisão, como (e sobretudo) no cinema, onde há décadas desempenha importantes papéis, muitas vezes de mulheres fortes e absolutamente indispensáveis para entendermos a história brasileira, mas que foram invisibilizadas pelo personalismo machista de nossa memória oficial.

Da mesma forma como interpretara a mãe do ex-presidente Lula em “Lula: o filho do Brasil” (2009), figura imprescindível à formação de um dos maiores líderes políticos do país, e Lota de Macedo Soares em “Flores Raras” (2013), engenheira responsável pela construção de um dos mais belos parques urbanos do mundo, o Aterro do Flamengo; Glória agora nos traz um retrato respeitável de Nise da Silveira (1905-1999), possivelmente o maior nome de nossa psiquiatria.

Com direção assinada por Roberto Berlirner, cuja trajetória esteve ligada aos documentários, “Nise: O Coração da Loucura” é uma produção agradavelmente pequena, singela e que não transforma em limitação o fato de restringir-se (também por motivos de custo de produção) ao contexto de trabalho de Nise no Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro. Lá a médica desempenhou sua tenaz luta antimanicomial, tornando-se uma das primeiras no Brasil a refutar os celebrados métodos de eletrochoque e lobotomia, que rendera prêmios, como o Nobel, aos seus inventores.

Rebatendo o estoicismo do progresso científico, Nise levou as Belas Artes ao consultório, tratando seus “clientes” (não pacientes) com técnicas de pintura, música, interação social e formação de laços afetivos (com animais de estimação, por exemplo). Aproximou-se paulatinamente da linha de psicologia analítica do suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), marcado pela análise dos simbolismos, arquétipos e das representações do inconsciente. Tendo tido que esperar a chegada de traduções francesas de Jung ao Brasil, Nise chegou a corresponder-se com o renomado médico, que a princípio pensara tratar-se de um homem, em tempos em que eram raríssimas as mulheres nesse ramo.

Como restrito a maior parte do tempo nos cenários do hospital psiquiátrico, não há muitos desafios apresentados à produção em termos de reconstrução histórica (a trama se passa nos anos 40 e 50). O maior desafio, evidentemente, se impõe a dúzia de atores de desempenham os papeis principais dos clientes de Nise. Muitos deles conhecidos do público de cinema, todos conseguem desempenhos impressionantes: ao mesmo tempo humanos, bem como tecnicamente certeiros. Não vemos trejeitos fáceis ou estereotipados sobre as patologias representadas. Pelo contrário, o nível de convencimento que eles alcançam é arrebatador.

Além disso, suas histórias pessoais são tratadas com a devida atenção e zelo pelo diretor, que os dá a profundidade recompensadora pelo bom trabalho interpretativo que oferecem. Talvez o único desperdício seja de Roberta Rodrigues no papel de Ivone, enfermeira braço-direito de Nise, que posteriormente se tornaria um dos nomes mais importantes do samba nacional, a “rainha do samba” dona Ivone Lara, hoje com 95 anos, autora de músicas como “Joia Rara” e “Nasci para Sonhar e Cantar”.

A parte disso, Cada personagem tem seu espaço, nenhum ator sobrepujando o outro, todos funcionando como uma orquestra harmoniosa, ao mesmo tempo que tristemente sofrida. Por exemplo, é adorável a história de romance entre a estagiária Marta (Georgina Góes) e paciente Raphael (Bernando Marinho), bem como a trama do prodígio Emygdio (Claudio Jaborandy), operário por profissão e pintor por pura vocação.

Tudo isso e muito mais envolvendo a biografia da médica brasileira é retratado de forma linear e consistente pelo filme, sem reservar grandes surpresas narrativas, porém traçando um panorama introdutório bem eficiente sobre uma figura sui generis cuja importância, pelo menos no imaginário popular, perdeu relevância em meio a polifonia muitas vezes injusta de nossa memória coletiva.

Nise fora, sem dúvidas, uma mulher para ser lembrada. Felizmente, muitas vezes o é, especialmente na área médica. Ainda assim, merece o reconhecimento em níveis mais populares, e o filme de Berliner serve para oferecer isso em sua memória. Mais do que um filme, soa, portanto, como um ode de fã.

Vinícius Volcof
@volcof

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