Através de uma metáfora cinematográfica repleta de símbolos e referências, o espectador é exposto a críticas oportunas e estimulado a refletir sobre sonhos e preconceitos.
O ano de 2015 comprovou que a técnica fílmica de animação é terreno bastante fértil para a criatividade. Apesar do detestável subtítulo brasileiro e do trailer vazio, os minutos iniciais de “Zootopia: Essa Cidade é o Bicho” comprovam tratar-se de uma obra magnífica.
Coube ao prólogo apresentar a premissa do filme, através de uma encenação teatral em que os animais são expostos no pretérito diegético: “vorazes predadores” contrapostos às “presas fáceis”. Na diegese contemporânea, por outro lado, os animais outrora selvagens e inimigos naturais vão abandonando todos os rótulos para conviverem em uma sociedade harmônica, inclusiva, tolerante, ordeira e pacífica.
Ou seja, o roteiro cria um universo diegético com animais antropomorfizados (uma prosopopeia inteligente), civilizados e despidos de discriminações, adotando o que em filosofia política os teóricos humanos (reais) chamam de contrato social – há uma clara premissa contratualista. O estado de natureza é hobbesiano (ruim, vez que havia conflito), mas o pacto é lockeano (de associação, com um soberano que participa e é limitado por ele). Assim, o plot elabora uma grande metáfora cinematográfica para embasar a obra, uma parábola da vida humana em sociedade – os animais agem tal qual a espécie humana.
A protagonista Judy Hopps é uma simpática coelha que sonha em ser uma policial (honrosamente, a primeira da sua espécie), ignorando os desafios que precisaria enfrentar – tendo como principais barreiras sua espécie (coelho) e seu gênero (fêmea). Diametralmente opostos a ela, seus pais, representando o paternalismo exacerbado (também bastante real), defendem que o melhor é não ter grandes sonhos. Entretanto, Judy não se abala até alcançar em Zootopia (nome significativo que une os radicais gregos zôion, animal, e topos, lugar), local que materializa a alegoria formada, o intento almejado.
O plot segue com duas catapultas temáticas: a luta contra o preconceito – em especial de gênero, havendo forte teor feminista na obra (como ao eleger uma fêmea independente, corajosa e ambiciosa como protagonista) – e a busca pela realização dos sonhos. A abordagem é no sentido de estimular a reflexão do espectador (e o faz com maestria), sem doutrinação teórico-ideológica. Demonstra o porquê da imprescindibilidade da tolerância no convívio social, isto é, não apresenta verdades que devem ser absorvidas mecânica e irracionalmente, mas mandamentos de conduta reforçados por conclusões lógicas de cunho humanista. Melhor que expor é provocar a reflexão.
A narrativa chega a tomar rumo diverso do inicial, flertando com o gênero policial, sem abandonar os elementos simbólicos – alguns sutis (como as portas do trem com tamanhos diferentes, evidenciando a adaptabilidade dos construtos às necessidades de cada um), outros, escancarados (como uma alusão à festejada série “Breaking Bad”). Judy, o norte moral, se une ao malandro Nick Wide (uma raposa) para desvendar um mistério que é motor da trama – é neste ponto que a narrativa efetivamente começa, todavia, prosseguindo previsível.
O filme é repleto de cenas emblemáticas: uma delas, excelente, faz uma referência clara ao clássico “O Poderoso Chefão” (dentre outros filmes homenageados); outra, simplesmente hilária, faz uma nítida e ácida crítica ao funcionalismo público por uma sátira genial. Insaciável, insinua também censuras oportunas à imprensa sensacionalista e manipuladora, bem como aos políticos corruptos e ególatras. Até mesmo trilha sonora e design de produção são simbólicos e alinhados ao texto.
O público-alvo é infantil, mas é evidente que as crianças não conseguirão enxergar conscientemente tudo isso. Porém, a inserção de símbolos de domínio do público adulto – inclusive uma cena de mal gosto sobre naturismo – permite o alargamento do perfil do espectador (leia-se: toda a família pode se divertir).
O roteiro é imensamente superior à direção. A maioria das cenas de ação exagera no dinâmico ao estabelecer cortes exageradamente rápidos, como na cena do treinamento de Judy. Ainda mais grave, eles claramente não dominam a linguagem 3D ao usar constantemente rack focus e (ainda mais grave) elaborar planos com pouca profundidade de campo. O resultado é um 3D pífio!
Isso não apaga, porém, o brilhantismo ímpar do plot, que, embora não seja plenamente original, cria uma fábula criativa (com direito a grand finale) e inteligente.