Documentário é tecnicamente bem feito e fiel à biografia de Nina Simone, porém, o melancólico roteiro reduz seu legado artístico para explorar suas polêmicas pessoais.
Documentar uma biografia de um artista significa retratar sua vida e sua obra, e a dificuldade reside justamente na dosagem entre elas. Ainda que o lado pessoal do artista seja menos conhecido que a sua vida pública, a exposição daquele não pode ofuscar esta, sob pena de reduzir o legado deixado.
A primeira cena de “What Happened, Miss Simone?” é impactante o suficiente para expor a robustez de Nina Simone enquanto figura pública ao surgir no palco com expressão séria e um vestido preto. Sua entrada triunfal faz mais sentido ao continuar em momento posterior, e a cena seguinte (uma elucubração sobre a liberdade em um solilóquio da própria artista) é simbólica para expor as suas várias facetas (pianista, cantora, ativista, mãe e mulher).
O documentário logra bastante êxito para retratar a vida de Nina Simone, perpassando eventos de conteúdo pessoal e profissional: o início precoce (aprendeu a tocar piano “com 3 ou 4 anos”); o aprendizado do piano clássico que moldou seu sonho de ser a primeira pianista clássica negra dos EUA; o “golpe racista” da escola da Filadélfia; o canto de “música do diabo” em bares e a consequente transformação de Eunice Waymon em Nina Simone; o casamento e a maternidade; o avanço na carreira que a apresentação no Carnegie Hall (em 1963) representou; o envolvimento com o ativismo relativo aos direitos civis dos negros estadunidenses (juntamente com Martin Luther King e Malcolm X, dentre outros); o declínio; e assim por diante. Porém, o roteiro dá clara preferência ao seu perfil polêmico, em detrimento do legado artístico – a vida prevaleceu sobre a obra.
São poucas as músicas presentes, e é olvidada a mais célebre (“Feeling good”) – talvez porque soasse como um paradoxo, dado o tom melancólico adotado no filme (principalmente no encerramento). A espiral de adjetivos (original, única, genial) e as características musicais peculiares (mudava o tom no meio da música, misturava estilos – principalmente jazz, blues, folk e gospel) fazem presumir o quão grandiosa Nina Simone foi, sem escancarar seu imenso talento, vez que o roteiro é construído tendo por base 3 pilares laterais à música de Simone.
O primeiro pilar é a dimensão maternal da protagonista: empolgada, ela se julgava boa mãe, mas os relatos da sua filha Lisa dão a entender um enorme ressentimento ao enaltecer a artista para deixar nas entrelinhas a insatisfação enquanto filha. Figura recorrente no filme, ela discursa simbolicamente em uma poltrona do que parece um teatro, metáfora da sua posição de espectadora privilegiada.
O segundo pilar é a dimensão matrimonial, o ápice e o deslize do roteiro. Andrew Stroud, marido e empresário de Nina, largou a polícia para dedicar-se à carreira da esposa, sendo retratado com enorme indulgência. No universo afílmico, ele foi o grande vilão da vida da artista, vez que responsável pela maior (não única) violência que ela sofreu, a doméstica. Stroud protagonizou cenas que, apesar de não aparecerem (por se tratar de um documentário), conseguem comover pelos simples relatos. A visão branda e parcial dos fatos (por exemplo, ao ocultar as internações em hospitais) os atenua, contudo, é patente o sofrimento da artista e o provável nexo entre o mal que ele causou a ela e a raiva que ela demonstrava.
Foi nesse contexto que Nina Simone encontrou a libertação no terceiro pilar, envolvendo-se de corpo e alma na temática dos direitos políticos como ativista, forma clara de fuga do lar. “Não ligo se ficar sem comer ou dormir, contanto que faça algo que valha a pena”, ela afirmou, e a canção “Mississipi Goddam” representou mais uma mudança de paradigma da sua carreira. Se a cantora entrava em declínio, a mensagem transmitida pela ativista expandiu a figura pública e a colocou em outro patamar, de transcendência social.
Embora impressione seu discurso de incitação à criminalidade e ao confronto bélico, aliada a frases de efeito (exemplo: “adoro violência física – fazendo amor ou guerra – e ponto final”), o que realmente choca é o desfavorável (para dizer o mínimo) ambiente em que Nina vivia: tudo colaborava para que ela fosse hostil. Como ela poderia ser diferente, amando um homem que a espancava e estuprava? O diagnóstico tardio das suas psicopatologias estranhamente aparenta ser causa da sua hostilidade, e não resultado do mundo caótico que vivia. A agressividade foi, pois, reverberação da violência outrora sofrida, e o radicalismo na temática dos direitos políticos foi a maneira encontrada de extravasar a dor, apesar dos sacrifícios.
Como documentário, a diretora e roteirista Liz Garbus mais acerta do que erra. Usa uma linguagem um pouco conservadora (coerente com o viés cinematográfico), com montagem revestida de intercalações (principalmente canções), narração voice over e relatos de pessoas que são autoridade no tema (por envolvimento direto ou estudo). Garbus usa ainda como trunfo várias declarações da própria Nina – o que dá maior objetividade, vez que ela conduz o filme –, nem todas públicas (incluindo o que aparenta ser um diário), elevando a qualidade do documentário. Assim, tecnicamente, o filme é muito bem feito. Entretanto, para uma artista indicada 15 vezes ao Grammy, “What Happened, Miss Simone?” não faz jus ao legado artístico deixado, fazendo uma homenagem aquém do que ela merecia.