Apesar de enfraquecer ao final, o roteiro é inteligente e bem conduzido, trazendo cenas tocantes que tornam o filme arrebatador.
A filosofia antiga tem em Platão um de seus maiores nomes. Na sua obra “A República” (especificamente no Livro VII) está presente a “Alegoria da Caverna”, passagem das mais famosas de toda a filosofia. O mito conta a história de prisioneiros acorrentados em uma caverna desde o seu nascimento, acreditando que as sombras que lá enxergam (é tudo que veem) são toda a realidade que existe. Para eles, não haveria nada real além das sombras e da caverna em si. Quando um dos prisioneiros se liberta, descobre, ao sair da caverna, que o que enxergava não era real, pois o real estava no exterior. Ao retornar e contar aos seus colegas (revelando que, na verdade, as sombras não são reais), é ridicularizado por eles, que continuam acreditando que a verdade está nas sombras, não havendo nada exterior à caverna. A ideia de Platão foi criar uma metáfora segundo a qual existiriam dois mundos: o primeiro, imperfeito, acessível pelos sentidos, que nos enganam (é o mundo sensível); o segundo, perfeito, é acessível apenas pela razão, que é a única que pode nos dar acesso à verdade (é o mundo inteligível).
Emma Donoghue teve possivelmente na platônica Alegoria da Caverna sua grande inspiração ao escrever o livro “Room” e elaborar o roteiro para o homônimo filme (aqui no Brasil, “O Quarto de Jack”) – que, inclusive, concorre ao Oscar de Melhor Filme. É a história de Jack (Jacob Tremblay) e sua mãe (chamada por ele de Ma, interpretada por Brie Larson), que moram dentro do Quarto (não é um quarto, mas o Quarto), sem jamais sair, a diferença entre eles é que apenas ele, em seus 5 anos de vida, desconhece a existência de um mundo exterior. Como ele sempre morou trancado no Quarto, tudo que lá estava era real e verdadeiro, não havendo nada além daquilo que vê. Tudo muda quando Ma revela para Jack que há um mundo exterior, que ele acaba conhecendo (o que sabemos pelo trailer). É aí que o perspicaz roteiro enfraquece, transformando o filme em um drama comum, de consequências óbvias e (o que é mais grave) subtramas meramente sugeridas – em especial, (a) o absurdo abandono narrativo de Ma, que tem um sofrimento enorme na readaptação ao mundo, mas que é mostrado apenas en passant, e a dificuldade do avô em aceitar tudo, deixando o excelente William H. Macy com uma aparição efêmera.
Esse enfraquecimento, porém, não apaga a ideia inicial inteligente e sua ótima condução. A direção de Lenny Abrahamson (indicado ao Oscar) é muito eficiente: monta um prólogo com flashes do Quarto em silêncio; usa Jack como narrador (expondo muito bem o “amadurecimento” da criança nas falas), dando até um tom fabulesco (“era uma vez”); cria alguma sensação de claustrofobia que se alivia com a saída do Quarto; e usa com sagacidade a câmera subjetiva (na perspectiva do menino) com enquadramento cujos centros de interesse fiquem nos cantos (pois Jack, no início, evita olhar diretamente para as pessoas). Ademais, há progressiva abertura no enquadramento: os planos médios e fechados nas cenas que se passam no Quarto não permitem (propositalmente, é claro) a percepção do quão pequeno ele é – mesmo após filmá-lo em 360 graus –, filmando em planos médios e abertos após a saída do local. Isso indica que, apesar de Jack e Ma continuarem em ambientes fechados, não estão mais na clausura do Quarto. Também há um acerto no uso das cores: por exemplo, com tons acinzentados e envelhecidos (no Quarto), maior variedade fora e um carro vermelho (símbolo da morte). Competência não faltou a Abrahamson, merecidamente reconhecido.
No elenco, os dois que mais aparecem são o destaque óbvio. O ator mirim Jacob Tremblay torna Jack ainda mais fascinante. Sua verdade é paradoxal: Lucky é um cachorro imaginário que existe, todavia, um bolo de aniversário sem vela não é um “bolo de aniversário de verdade”. Para ele, existe apenas o Quarto, o Espaço Sideral e o Céu, nada mais (ele chega a dar “bom dia” para os objetos do Quarto). Como na Alegoria da Caverna, Jack não acredita (“você está mentindo”), nem quer acreditar (“quero voltar a ter 4 anos”), que o que ele conhece pelos seus sentidos não é o mundo real, que existe algo além, e o argumento usado por Ma (“agora você é grande e inteligente”) não o convence. Porém, a curiosidade (inerente ao humano) fala mais alto (ao desmontar um brinquedo, representação simbólica da transformação interna, figurativamente, é a necessidade de destruir para construir), balizada pela ingenuidade infantil – para a alegria de Ma. Ao conhecer o mundo (o exterior), ele fica tão maravilhado que questiona se está em outro planeta. Jack é o protagonista e rouba a cena, todavia, seu desempenho coopera com o de Brie Larson (Ma), favorita a melhor atriz no Oscar. Juntos, são responsáveis por cenas tocantes. Larson vai muito bem, mas não impressiona: perto dela, ele é um gigante.
O que é central no longa são questionamentos de Platão cujas respostas ainda não temos. O que é a verdade? O que é real? “O Quarto de Jack” tem uma premissa muito inteligente, e boa parte do drama (antes do encerramento) é capaz de encolerizar o público. Por essa parcela, o filme é arrebatador.