Na sua habitual tarefa de estudar as emoções humanas, o genial Charlie Kaufman retorna com uma animação intimista e tocante, que já está marcada nos anais da sétima arte.
Dono de uma carreira irretocável, de obras consagradas como “Quero Ser John Malkovich” (1999), “Adaptação” (2002) e “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004), o roteirista e ocasionalmente diretor Charlie Kaufman já pode ser considerado como um dos maiores de sua geração. Com trabalhos de extrema complexidade técnica e temática, que por sua vez são recheados de camadas, ainda que narrativamente acessíveis por trabalhar ao lado de bons cineastas, Kaufman concentra suas atenções nas emoções e relações humanas, principalmente em discutir e explorar àquelas que mais nos aflige. Às vezes de maneira surreal, mas sempre com total delicadeza e sensibilidade. E é justamente aí que está a beleza da sua arte, no modo que o realizador enxerga o mundo
Longe do cinema desde sua primeira empreitada na direção – “Sinédoque, Nova York” (2008), que dividiu opiniões, mas foi considerado pelo venerado crítico Roger Ebert como “o melhor filme da última década” – o exótico escritor americano preparou o seu novo e surpreendente projeto de modo bastante pessoal para que tivesse maior liberdade. Idealizado em stop-motion, “Anomalisa” foi produzido através de crowdfunding, um financiamento coletivo onde o público em geral pode investir em troca de contrapartidas. O então longa animado foi escrito e co-dirigido pelo próprio Kaufman, pois também teve o auxilio de Duke Johnson, que havia trabalhado com o formato na série televisiva “Community” (2009).
Pode soar clichê, mas é curioso que as figuras mais humanas dessa nova leva de títulos das premiações venham justamente de uma animação. A forma como cada personagem é tratado e construído, a maneira que age e se comporta, o preciosismo nos movimentos e trejeitos, os pensamentos, os sentimentos, os sonhos. Tudo parece se encaixar, funcionar e fluir de modo absolutamente orgânico, sendo assim capaz de nos fazer embarcar em seus dilemas. Não demora para que o espectador esqueça (ou entenda) que está diante de uma produção feita com bonecos que emulam vivências cotidianas. Que de tão sublime é capaz de, em vários andamentos, fazer rir e chorar, sentir medo e vergonha, ter raiva e pena. Especialmente com a sua figura central.
Para conseguir tais feitos, Charlie Kaufman não precisou criar um texto mirabolante ou cheio de plot twists, fez exatamente o contrário, já que a trama à primeira vista mostra-se bem simplória. Acompanhamos aqui Michael Stone (David Thewis), um escritor motivacional que viaja à Cincinnati para dar uma palestra sobre o seu novo livro de atendimento ao consumidor. Antes mesmo de chegar ao hotel, durante o percurso, notamos que ele é um sujeito triste e até inconformado, mesmo diante da sua aparente boa vida. Bem sucedido, casado e com um filho, parece não ter interesse nas pessoas em geral. Agora solitário e na nova cidade, decide ligar para uma ex-namorada pensando num reencontro. Algo que acaba não dando certo.
É nesse meio tempo que Michael conhece Lisa (Jennifer Jason Leigh), uma moça que ele julga diferente e por quem logo se apaixona. E é também aí que surge algo incomum dentro do longa, ou na verdade algo que é de fato comum. Notamos que todos os personagens presentes na história possuem uma voz masculina em particular (Tom Noonan), mesmo as mulheres. Menos Lisa, que naturalmente possui entonação feminina, sendo assim considerada única. Mas ela é o típico arquétipo do comum: ainda desastradamente encantadora como pessoa, Lisa é baixinha, está acima do peso e possui uma cicatriz próxima ao olho direito que desfigura levemente parte da sua face. Esta que sutilmente é coberta por uma mecha de cabelo. Mas suas particularidades e jeito espontâneo conquistam não apenas o escritor mas o público.
Abordando então o interesse pelo mundano ou explorando a beleza do comum, Kaufman desnuda a alma de Michael Stone e revela várias facetas peculiares do humano. Através do relacionamento com Lisa vamos entendendo como as coisas funcionam na visão do sujeito. Intelectual ao ponto de ver arte nos mais banais atos da nova conhecida, mas igualmente egoísta ao achar que o mundo gira em torno de si, Michael diz para Lisa que sempre perde as pessoas que gosta, quando na verdade não percebe que é ele quem se distancia rapidamente destas, devido sua constante falta de interesse. Vemos o exemplo prático de seus pensamentos sobre si e os outros pelo grafismo de um sonho, que esteticamente tem fortes veias surrealistas e metalinguísticas para com a técnica empregada. Aliás, ao acordar pela manhã a alegoria fica ainda mais clara quando sua paixonite vai se esvaindo aos poucos. Revelando também as reais intenções do realizador.
Um texto riquíssimo em temas, metáforas e alegorias, e ao mesmo tempo belo e tocante, que mostra realmente o quão genuíno é o trabalho do roteirista. Que para chegar nesse ponto teve ao seu dispor uma equipe técnica eficientíssima. A começar pela qualidade da animação, minuciosamente atenta a detalhes que tornam tridimensionais as figuras destacadas. Por sinal, o design de produção é esplêndido e importantíssimo, tendo a função de dar vida aos locais aludidos. A fotografia de Joe Passarelli com base em tons mais clássicos, que variam entre o amarelo e o azul, confere elegância e também tristeza à atmosfera fílmica, criando uma rima narrativa com a personalidade do protagonista. Assim como o elenco passa a credibilidade exigida, fechando assim o ensejo e tornando “Anomalisa” mais uma pequena obra-prima moderna, engendrada pelo genial Charlie Kaufman.