Mesmo reaproveitando a estrutura de "Rocky - Um Lutador", a estréia do jovem Adonis nos ringues e nas telas caminha com as próprias pernas e pode gerar uma série própria - um passo de cada vez, um soco de cada vez, um round de cada vez.
Confesso que era um dos céticos em relação a este “Creed – Nascido Para Lutar”. Afinal, a trajetória de Rocky havia se encerrado com tamanho êxito em “Rocky Balboa” que um novo longa naquele universo corria um sério risco de manchar o legado da franquia. Com prazer, digo que eu estava errado – assim como Sylvester Stallone, que inicialmente relutou muito em voltar ao papel do Garanhão Italiano, especialmente porque, pela primeira vez, ele não iria roteirizar uma produção com o personagem, que também cede o posto de protagonista para um novo pugilista.
O diretor e roteirista Ryan Coogler (do ótimo “Frutivale Station”), fã da franquia desde criança, procurou Stallone e o convenceu a abraçar o projeto, em uma trama que apresenta Adonis Johnson (Michael B. Jordan), filho ilegítimo do falecido Apollo “O Doutrinador” Creed, antigo rival, amigo e treinador de Rocky.
Adotado pela esposa de Apollo, Mary Ann (Phylicia Rashad) após a morte de seus pais, Adonis sofre desde criança com a fome de lutar, herdada de Apollo. Já crescido, ele abandona uma vida de conforto em Los Angeles para ir procurar por Rocky na Filadélfia, procurando ser treinado pelo homem que era como um irmão para seu pai. Juntos, Adonis e Rocky encontram um novo rumo para suas vidas, mas enquanto Adonis tenta alcançar todo o seu potencial, o Garanhão Italiano acaba tendo de encarar uma luta inesperada.
Mesmo que herde a estrutura de roteiro de “Rocky – Um Lutador” e mencione, direta ou indiretamente, cada um dos filmes da série, “Creed – Nascido Para Lutar” busca se colocar como uma entidade separada, algo que espelha a própria busca do seu personagem. O Adonis criado por Coogler e pela forte interpretação de Michael B. Jordan revela alguém que sofre com uma “fome” de abraçar um destino pouco ortodoxo e fazer aquilo que somos condicionados desde o nascimento a fazer – superar nossos pais, com o roteiro tendo um componente edipiano fortíssimo.
Mesmo mostrando-se vivaz e espirituoso, Adonis tem os seus próprios demônios e medos, não apenas de não estar à altura de seu nome – que ele inicialmente renega e se vê obrigado a abraçar, mas de ser abandonado por aqueles que possam entrar em sua vida caso ele baixe a guarda.
Sua busca por Rocky é o inverso do que ocorreu no filme original, onde Mickey procura o Garanhão Italiano quando do anúncio da luta com Apollo, em busca de uma última chance de voltar ao mundo do boxe profissional. Adonis busca a ajuda de um mentor (e figura paterna) relutante, alguém que já venceu o seu pai no passado. Não a toa, em uma das passagens mais bonitas do filme, Adonis “luta” com a imagem projetada de seu pai, mimicando os movimentos de Rocky.
Enquanto isso, o boxeador imortalizado por Stallone está “vivendo do passado”, passando seus dias em um restaurante que leva o nome de sua falecida esposa, decorado por fotos de glórias pretéritas, na companhia dos fantasmas de seus entes queridos – e a naturalidade com que Rocky “conversa” com Adrien e Paulie nos túmulos destes mostra um homem resignado com um destino imutável. Mesmo com tudo isso, Rocky não passa tristeza, mas uma melancólica sensação de que está confortável com isso, algo que Stallone transmite com doçura. É a chegada de Adonis – protagonista e agente de transformação dessa história – que muda tudo.
A química entre os dois, com Jordan e Stallone travando diálogos de igual para igual, é incrível. Mesmo sendo franco e direto, Adonis é alguém com uma bagagem emocional pesada, que tem sempre a guarda levantada quando se sente ameaçado. Rocky, por sua vez, exala uma simplicidade sábia. Por mais que não tenha educação formal e mantenha certa ingenuidade infantil (ou por conta disso), o velho lutador tem muito a passar para o seu pupilo (e para nós), sendo surpreendente quando, em determinado ponto, Adonis o pega de surpresa com um ultimato, mostrando que os dois têm o que ensinar um para o outro.
O relacionamento entre Adonis e sua namorada, Bianca (Tessa Thompson) também tem suas nuances. Assim como o jovem Creed, ela também tem suas paixões, ambições e dificuldades. Mesmo coadjuvante na história de Adonis, Bianca é a protagonista de sua própria história, com a bela e talentosa Thompson mostrando garra e carisma ao defender sua personagem, com esta inclusive interferindo diretamente na narrativa com duas musicas na trilha. Os carinhos e brigas que o casal divide servem à história de maneira natural, com os conflitos não sendo forçados e resolvidos à revelia do roteiro.
Interessante notar como o diretor também insere sutilmente alguns comentários sociais. O uso de gírias para diferenciar Filadélfia de Los Angeles – especialmente quando o filme muda pra parte mais barra-pesada da cidade -, o fato de que virtualmente todos os garotos no reformatório onde encontramos Adonis pela primeira vez são negros… Pequenas coisas que, somados com o design de produção habilidoso criam um mundo tangível e relevante para o drama que se desenrola (quando, por exemplo, vemos um Rocky que se diz conformado em se tornar apenas um nome em um cartaz velho em um ginásio).
Coogler também dota cada um dos combates de identidades visuais únicas. Os destaques certamente vão para a primeira luta realmente profissional de Adonis, filmada em um único e empolgante plano, e para o combate de arena entre Adonis e seu rival, o arrogante Ricky Conlon (Tony Bellew), no qual o diretor mixa uma filmagem a lá HBO com planos mais abstratos, misturando um pouco o ponto de vista da plateia e o de Adonis.
E se eu falei pouco do “antagonista” do longa é porque a fita não dá tanta importância para ele, preferindo focar nos relacionamentos Adonis/Rocky, Adonis/Tessa e Adonis/Apollo. E, considerando a energia emanada pela tela quando o “Baby Creed” faz por merecer alguns acordes da trilha clássica de Bill Conti em seu apogeu, Ryan Coogler certamente acertou em seu foco. Recomendado.