Ficção cientifica que teve sua estreia tardia no Brasil, discute guerra entre classes sociais, sem perder a tensão. Deixando o espectador ligado do início ao fim.
O gênero da ficção cientifica vem sendo bastante explorado em Hollywood nos últimos anos, ora em títulos que colocam a ação como foco principal, ora em obras dramáticas mais autorais. Muito se discute se alguns desses recentes exemplares podem ser adjetivados como pertencentes a vertente que gerou clássicos como “Metropolis” (1927), “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (1968) e “Blade Runner – O Caçador de Androides” (1982). A verdade é que, em maior ou menor grau, esses filmes trazem algo que é fundamental dentro deste conceito: a reflexão sobre uma possível situação futura ou passada.
Não é diferente com o novo longa do coreano Joon-ho Bong, diretor que com apenas 45 anos de idade já é considerando um dos grandes nomes cinema asiático, isto por ter realizado trabalhos interessantíssimos como o filme-catástrofe “O Hospedeiro” (2006) e o visceral “Mother – A Busca Pela Verdade” (2009). Ambos com claras marcas autorais, mas que conquistaram o mundo pela proposta universal. Assim é “Expresso do Amanhã”, um filme que carrega todos os cacoetes do cineasta e consegue dialogar com múltiplas plateias. Não apenas pelo elenco recheado de estrelas, mas por possuir uma narrativa orgânica, hábil e pontual.
Tendo como plano de fundo um leve debate sobre a negativa influência humana dentro das condições climáticas, a história parte de um experimento feito para impedir o aquecimento global, que acaba falhando e levando o planeta a uma espécie de era do gelo. Nesse meio tempo, o ricaço Wilford (Ed Harris) cria um enorme trem que é capaz de abrigar centenas de pessoas – estes que são os últimos sobreviventes da Terra. Até aí temos uma plot deveras genérica, a coisa muda quando notamos que os vagões são na verdade separados por classes sociais. Os mais pobres vivem em terríveis condições e os mais abastados são tratados como a realeza.
O roteiro assinado por Bong e Kelly Masterson discute, através de inúmeras alegorias, um pouco do que seria o capitalismo em sua mais alta escala. Enquanto os miseráveis “salvos” pelo comandante do local estão depostos em situações deploráveis, amontoados e no limite, aqueles com maior poder aquisitivo residem em carros quase vazios e luxuosos, apenas pelo simples comodismo e conforto. Um retrato claro e doloroso da nossa sociedade, desde o início dos tempos, que é encarado com naturalidade e em muitos casos até defendido.
O texto ganha pontos também por trazer uma espécie de revolução para a trama, liderada pelo estrategista Curtis, otimamente interpretado por Chris Evans, que faz aqui talvez o papel mais difícil de sua carreira. Com uma caracterização acertada, Evans consegue transmitir a veracidade do personagem e levar a bandeira da insatisfação do grupo que faz parte. Como de costume, o veterano John Hurt aparece como peça fundamental, sendo Gilliam quase um mestre para o protagonista. Octavia Spencer surge como o símbolo da mãe em meio a tudo aquilo.
Do outro lado, no núcleo de “vilões” está a sempre excelente Tilda Swinton, que dá vida a repugnante Manson, que de tão caricatural acaba soando hilária, e Ed Harris como o venerado Wilford. Aliás, Joon-ho Bong acerta novamente quando coloca a imagem de Wilford quase como uma figura religiosa, onde em um dos andamentos vemos crianças aprendendo o quanto ele é importante para as suas vidas. A alusão é mais amplificada quando conhecemos um pouco da opinião do tal líder em relação às pessoas que ali residem.
Do ponto de vista técnico, apesar da fita claramente apresentar carências orçamentárias, principalmente nos efeitos do mundo encoberto por gelo, a direção de arte supre esta deficiência ao apresentar uma riqueza de detalhes assombrosa a cada vagão destacado. Não apenas no que se refere ao visual como as rimas narrativas sobre as questões apontadas. Os cenários tornam-se mais expressionistas pelas lentes refinadas de Hong Kyung Pyo, que confere uma fotografia inicialmente acinzenta, mas que com o tempo varia os tons entre cada carro mostrado. A trilha sonora de Marco Beltrami também é importante por criar e mesclar bem os momentos de tensão – como a cena da batalha no túnel.
No geral, mesmo que detenha entretons obscuros (ou legítimos) durante todo tempo de tela, o desfecho de Expresso do Amanhã se revela um tanto otimista pela recompensa obtida por aqueles que lutaram. Ainda que esteja longe de ser um mar de rosas, pois a alegoria com o mundo difícil e gelado que os aguarda é tão pontual quanto às baixas sofridas. Portanto, é lamentável que obras tão pungentes como estas demorem tanto para estrear no Brasil, e ainda em pouquíssimas salas. Quando não é pior, o caso também de outro recente e excelente exemplar do gênero, “Ex-Machina” (2015), que foi resignando apenas ao home video.