Em seu longa mais ousado e complexo, a Pixar nos leva à mente de uma criança passando por uma fase difícil, tornando uma premissa complicada em um filme tocante, inteligente e divertido.
Versões “urbanas” do corpo humano já serviram de palco para filmes como “Tudo o Que Você Queria Saber Sobre Sexo e Tinha Medo de Perguntar” e “Osmose Jones”. Mas, até onde minha memória me serve, desde “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, nenhuma produção ousou se passar na mente humana em uma escala tão ambiciosa, traduzindo conceitos psicológicos e emoções subjetivas em personagens e cenários concretos. Mas a Pixar tem um histórico de animar o inanimável e foi isso que a companhia fez neste fabuloso “Divertida Mente”. Sim, as piadas, gags e o visual embasbacante de praxe estão lá, mas aliados a uma ambição emocional e artística ausente nos trabalhos mais recentes da empresa da luminária.
Dirigido por Pete Docter (“Monstros S.A.”), que concebeu a história e o roteiro ao lado de Ronnie del Carmen (que também codirigiu a fita), Meg LeFauve e Josh Cooley, esta animação mostra a jornada de Riley, uma menina de onze anos que se muda com seus pais para a cidade de São Francisco. Dentro da mente da garota, suas emoções – Alegria, Tristeza, Raiva, Medo e Nojinho -, entram em conflito sobre como lidar com essa nova situação. As coisas pioram quando Alegria e Tristeza se perdem da “sala de comando”, deixando Riley sem suas duas principais emoções e colocando em risco as bases da identidade da menina.
Não é ousadia dizer que esse é o longa mais complexo produzido pela Pixar. Isso porque, por baixo de toda fofura, cores e tecnologia, o cineasta Pete Docter e sua equipe conseguem traduzir toda essa intrincada estrutura em um longa que flui bem e de maneira divertida e fascinante, jamais alienando o público infantil justamente por confiar na inteligência deste em lidar com uma obra mais desafiadora do ponto de vista intelectual e emocional.
Graças a um inteligente equilíbrio entre os dois “mundos”, entendemos rapidamente a dinâmica entre estes e como as ações de cada um dos personagens os afeta, mostrando a competência dos roteiristas e do montador Kevin Nolting (“Up – Altas Aventuras”).
Outra escolha acertada do texto foi a inexistência de um antagonista, focando nos erros, acertos e na evolução de Riley e de suas emoções que, claro, cometem erros (lembrando que a garota e suas emoções têm apenas onze anos de idade). Remetendo a “Toy Story” e à rivalidade Woody/Buzz,, o guião se centra na relação entre Alegria e Tristeza.
Até aquele ponto da vida de Riley, o domínio de Alegria era indiscutível, mas agora a antes esquecida Tristeza começa a ganhar espaço, algo que é natural com o amadurecimento de cada ser humano, mas essa mudança na cabeça da menina (que reflete o que está acontecendo em sua vida) não é fácil. Tristeza, aliás, não procura ofuscar Alegria, mas é compelida a procurar o seu espaço, do mesmo jeito que Alegria poda o máximo possível a atuação da amiga azulada. Várias vezes no decorrer da projeção, Alegria repete apaixonadamente que “Riley precisa ser feliz” e tenta colocar a Tristeza de lado.
Quando as duas se veem isoladas do mundo que conhecem (o que espelha o sentimento de alienação de Riley), as duas emoções precisam entender quais os seus papéis nessa nova etapa da vida da menina. Claro, seria ótimo viver eternamente em estado de euforia, mas isso nos faria perder muito da experiência humana, especialmente na entrada da adolescência.
Logo fica claro que Riley também precisa de Tristeza para crescer. Afinal, é através dela que coisas como saudade e nostalgia surgem e até mesmo a força intelectual de Tristeza sugere que o crescimento de Riley nessa área também depende dela – algo corroborado por vários escritores, que afirmam trabalharem melhor em estado melancólico.
Ao longo dessa viagem, Alegria e Tristeza também encontram o divertido Bing Bong, amigo imaginário criado por Riley quando criancinha e deixado de lado pela menina posteriormente, mas que ainda se mostra muito importante para os sonhos e imaginação dela.
Por falar em sonhos, Neil Gaiman com certeza vai sorrir ao assistir ao filme e ver alguns conceitos de sua aclamada série de quadrinhos “Sandman” sendo levemente referenciados (até mesmo Tristeza parece uma prima hipster da perpétua Desespero).
Raiva, Medo e Nojinho, a despeito de serem coadjuvantes, também possuem seus momentos e é hilário notar como o design dos personagens retratam suas funções, com Raiva remetendo a um Tiozão estressado (com um jornal que reflete os eventos acontecendo com Riley) e Nojinho remetendo a brócolis, justamente aquilo que a “ativou”.
Ao fazer com que as emoções não fossem exatamente “sólidas”, mas feitas de energia, os realizadores encontraram uma maneira sutil de mostrar mais uma diferença entre o mundo real e o da mente de Riley. Outro grande acerto foi a rima visual entre o plano que abre o filme e o do clímax emocional da história. O visual da mente de Riley e das “ilhas de personalidade” também é extremamente inventivo, mixando a ideia de engrenagens com uma arquitetura mais orgânica e até mesmo remetendo à anatomia humana, nas ligações entre as “ilhas” e a central de controle.
O filme se permite ainda explorar rapidamente as emoções dos pais de Riley, sendo sintomático que, enquanto as emoções da pequena tem a espirituosa Alegria como líder, a cabeça da mãe é chefiada por uma ponderada Tristeza (em uma central que remete ao programa feminino de entrevistas americano “The View”) e que a Raiva tome o centro na mente do pai (com um console que remete a aparelhos de guerra), mostrando exatamente que a tendência é que, quando crescemos, a alegria tende a ficar em segundo plano frente as nossas outras emoções.
A coragem de expor isso e ainda manter um viés otimista mostra quão corajoso e relevante “Divertida Mente” é, sendo obrigatório para crianças e adultos.
“Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança“.
1 Coríntios 13:11
P.s.: Seguindo a tradição Pixar, as cópias 3D do filme vêm acompanhadas por um curta produzido pelo estúdio, nesse caso o belo e tocante musical “Lava”.