Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 02 de março de 2015

O Duplo (2013): a psique humana levada ao surreal

Flertando fortemente com elementos surrealistas, Richard Ayoade constrói com elegância um sinistro retrato dos anseios e angústias mais profundas da mente humana.

O ser humano é oduplouma espécie constituída em sua essência por inúmeros conflitos. Conscientes da própria existência e com uma clarividência que nenhuma outra criação da natureza jamais chegou perto de alcançar, começamos a nos questionar sobre o mundo à nossa volta e a relação que mantemos com os indivíduos que nos cercam. Perdidos entre o que queremos ser, o que os outros pensam que nós somos e o que realmente somos, equilibrar essa equação de maneira a manter uma certa paz interior e com o meio externo é algo extremamente complicado e feito para poucos. O fato é que, salvo raras exceções, somos seres sempre insatisfeitos, inconformados e em constante conflagração.

O escritor russo Fiódor Dostoievski capturou essa essência em seu romance “O Duplo“, que agora ganha uma adaptação cinematográfica homônima relativamente livre e flexível, dirigida pelo inglês Richard Ayoade e roteirizada pelo próprio em parceria com Avi Korine. Aqui, acompanhamos a vida de Simon (Jesse Eisenberg), um garoto introvertido e solitário que vê sua rotina mudar completamente quando chega ao trabalho e nota que uma pessoa fisicamente idêntica a ele, James, entrou no escritório e passou a conquistar o espaço que, na teoria, era pra ser seu. Apesar das semelhanças fisionômicas, James é tudo aquilo que Simon gostaria de ser e não é; um indivíduo extrovertido, charmoso e que aos poucos vai tomando conta daquele ambiente, inclusive saindo com a garota pela qual ele alimenta uma paixão platônica e quase obsessiva, Hannah (Mia Wasikowska).

A cena inicial já nos introduz de forma simples  e eficaz como basicamente se dá a relação do protagonista com tudo que o cerca e a essência do que acompanharemos pelas próximas uma hora e meia. Sentado em um trem praticamente vazio, Simon é “convidado” a se retirar do seu local sem qualquer motivo aparente, ainda que as opções de assento sejam inúmeras. “Você está no meu lugar”, aponta incisivamente o sujeito. Sem esboçar reação, ele se retira e senta em outro lugar. Tudo isso enquanto observa sua amada Hannah em outro vagão.

Ayoade define em uma só sequência, e justamente a primeira de todo o filme, não só a complacência de Simon com as agressões que recebe, mas toda sua solidão e introversão como características marcantes e que serão importantes para o desenrolar da trama, além de ilustrar o ambiente onde a história acontecerá como um meio hostil, sombrio e pessimista. O trem é sujo, mal iluminado, vago; as pessoas que o frequentam estranhas e geralmente idosas. Só nesse pequeno pedaço de película, portanto, o diretor já nos “vende” toda uma atmosfera sinistra que permeará integralmente o longa e que, interpretando mais subjetivamente, representa todos os conflitos e demônios internos do personagem principal.

A construção de cena realizada no exemplo citado se estende para todas as outras que virão em seguida. Apoiada por uma montagem dinâmica e que confere elegância à película, temos a fotografia de Erik Wilson adotando sempre planos mais fechados, claustrofóbicos, com uma paleta de cores dessaturada e tons sufocantes e ameaçadores. Além disso, o jogo de espelhos espalhados pelos cenários, apesar de óbvio e colocado com pouca sutileza, também reflete (com o perdão do trocadilho) a ideia de dualidade presente tanto na mente de Simon, como no próprio enredo, com James atuando basicamente como o anti-Simon; fisicamente idênticos, mas fundamentalmente opostos.

Neste sentido, o desempenho de Jesse Eisenberg é uma das virtudes que segura a narrativa em alto nível; é uma composição minimalista, uma atuação de detalhes. Tendo o desafio de interpretar dois sujeitos completamente diferentes um do outro, mas com o mesmo figurino, maquiagem e dialogando com as mesmas pessoas, Eisenberg realiza um trabalho realmente digno de reverências; somos capazes de perceber exatamente quem é Simon e quem é James apenas pelo olhar do ator, por sua expressão, sem que o roteiro tenha que estar mastigando quando é um e quando é o outro em cena. Com o passar do tempo, vai ficando cada vez mais fácil distingui-los, uma vez que a mudança no modo de agir dos dois vai ficando mais discrepante, mas no começo é algo relativamente complicado e Jesse merece todos os créditos por suavizar essa árdua tarefa de maneira simples e eficiente, sem precisar chamar excessivamente a atenção para si mesmo.

Com um sopro surrealista, “O Duplo” entra nos terrenos mais sombrios da mente humana, investigando nossos medos, anseios e angústias mais profundas; de ser aceito pelas pessoas à nossa volta, de ter sua paixão correspondida, etc. Inclusive abrindo terreno para o nosso lado mais sinistro que desabrocha quando isso não ocorre. Apesar de não poder ser definido particularmente como um filme, de fato, surrealista, até porque o material que lhe deu origem não o é, é inegável que Ayoade claramente bebeu de tal fonte para se inspirar, até porque as próprias circunstâncias objetivas do longa são bastante “surreais”. Além disso, são situações que ganham toda uma outra conotação quando levadas para o campo do simbólico, do lírico, da psicologia e do subjetivo, sendo passível de diversas interpretações diferentes para o que está sendo visto em tela. Impossível não se lembrar, por exemplo, de clássicos como “Clube da Luta” e “Cidade dos Sonhos“, sem mencionar o mais recente “O Homem Duplicado“, ainda que as propostas de cada um difiram consideravelmente entre si. Os termos em que a discussão é colocada é que são semelhantes.

Assim, apostando em uma narrativa bem costurada para contar uma clássica história de um jovem em conflito com seu meio e, especialmente, consigo mesmo, “O Duplo” consegue alcançar seus ousados objetivos com primor. Apesar de ser só o segundo filme que dirige, Richard Ayoade prova que pode ser um cineasta grande na indústria. Uma obra que poucos viram até o momento, mas cuja qualidade certamente é inversamente proporcional ao número de espectadores que tiveram a oportunidade de apreciá-la.

Arthur Grieser
@arthurgrieserl

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