Certamente o mais ambicioso dos candidatos ao Oscar, este ácido e surpreendentemente divertido longa do geralmente estóico cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu usa os bastidores do mundo do entretenimento como pano de fundo neste estudo sobre a fragilidade do ego humano.
Uma coisa é uma coisa, não o que dizem dessa coisa. É possível atribuir diversos adjetivos a este “Birdman (Ou a Inesperada Virtude da Ignorância)”. Energético? Certamente. Hipnótico? Com certeza. Brilhante? Absolutamente. Mas nenhum deles definiria de forma precisa a experiência pela qual o mexicano Alejandro González Iñárritu nos conduz durante as duas horas de projeção.
Michael Keaton é um dos atores mais legais do mundo para quem cresceu nos anos 1990, mas, com exceção dos seus filmes da franquia “Batman” (de 1989 e 1992) e de “Os Fantasmas se Divertem”, sua carreira não é um exemplo de sucesso comercial – embora esteja vivendo um momento de volta agora, vide “Robocop” e o vindouro “Kong – Skull Island”. Por isso, é fácil para o público confundi-lo com Riggan Thomas, o ator que saiu de uma franquia de super-herói (o Birdman do título) há 22 anos e nunca mais emplacou nada.
Por mais que Iñárritu tenha baseado Riggan em seu ator principal e reforce isso de maneira subliminar junto ao público (vide o cartaz de “Birdman 3”, que usa a mesma fonte do pôster de “Batman – O Filme”), o fato é que se tratam de duas criaturas diferentes, com o neurótico protagonista da fita não devendo ser confundido com seu descolado intérprete.
Keaton é Keaton, não o que ele e Iñárritu nos dizem de Riggan. Mas O diretor/roteirista usa da similitude entre os dois para criar um referencial para o público entrar de cabeça naquele universo, criado com precisão caótica pelo realizador.
Simulando de maneira perfeita um filme montado em um longo plano-seqüência, “Birdman” é um mergulho em um universo repleto de inseguranças pessoais e profissionais, onde arte, artistas e críticos se digladiam para ver quem tem o direito de serem considerados superiores em relação aos seus pares/rivais.
Neste verdadeiro Homo homini lupus cênico, o protagonista aposta todo o seu dinheiro e bens produzindo, dirigindo e estrelando uma peça na Broadway baseada no conto de Raymond Carver “What We Talk About When We Talk About Love”, tudo em busca de se tornar um ator “sério” e não uma mera celebridade que faz filmes-pipoca.
Faltando poucos dias para a estreia, Riggan tem de lidar com Mike Shiner (Edward Norton) um talentoso e difícil ator que ameaça tomar as rédeas do projeto, sua namorada e companheira de palco Laura (Andrea Riseburough) diz que pode estar grávida, enfrenta dificuldades de relacionamento com sua filha Sam (Emma Stone), que saiu recentemente de uma clínica de reabilitação e não o respeita como pai ou profissional e, para completar, Tabitha Dickinson (Lindsay Duncan), a mais importante crítica de teatro da cidade, parece determinada a arruinar a peça e o próprio Riggan.
Em meio às colisões de egos e vontades no teatro (e nos bares próximos), um duelo de proporções shakespearianas acontece na mente de Riggan quando seu alter-ego Birdman começa a conversar com ele, querendo alçar vôo novamente, rindo das ambições de sua contraparte, comentando as vontades do público e distorcendo a realidade do ator.
Neste sentido, o Birdman – imaginário? – complementa os conflitos entre o ator e os demais personagens, envolvam estes vaidade (Riggan X Mike), sentimentos de amor/adoração/admiração (Riggan X sua família) ou o conceito de arte/artista (Riggan X Tabitha).
Apesar de deixar o personagem principal em alguns momentos para desenvolver as demais figuras da história, a câmera do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki basicamente persegue Riggan e Birdman, enquanto Iñárritu explora os arrependimentos e a solidão do perturbado ator, montando um quebra-cabeça audiovisual com as batidas instáveis de sua mente (baseada em bateria, a trilha sonora de Antonio Sanchez funciona quase como um sismógrafo diegético do que se passa naquela perturbada alma).
Por mais que existam algumas gorduras a serem cortadas (um beijo passional entre Andrea Riseborough e Naomi Watts não tem nenhuma função narrativa na história além do mais puro fetiche), é incrível como “Birdman” consegue falar sobre tantos temas diferentes sem fugir do seu objeto de estudo, com o roteiro de Iñárritu referenciando a si mesmo de maneira recursiva, mas sem se tornar auto-indulgente ou aborrecido, usando essas chamadas para acrescentar mais camadas em sua própria narrativa.
Contando com atores que, ao contrário dos intérpretes retratados no filme, não se furtam em explorar seus próprios problemas públicos para aprofundarem seus personagens (vide a decadência física de Keaton ou o notório temperamento de Norton, características que estes abnegadamente dividem com Riggan e Mike), o cast de “Birdman” demonstra um desprendimento que apenas ressalta o homogêneo brilhantismo de sua performance, neste que é o mais ambicioso dos candidatos ao Oscar deste ano. Recomendado.