Burton vira o olhar para falso artista plástico e, mesmo sem querer, quem brilha é a verdadeira pintora.
Há algumas décadas, Tim Burton explorou o estranho em universos que, se surgiam curiosos na tela, seguiam uma lógica própria, capaz de criar uma noção de cotidiano. Foi assim em “Ed Wood” (1994), no qual o personagem-título vive suas bizarrices como o pior diretor de cinema do mundo como se tudo não pudesse ser de outra forma, e em “Edward – Mãos de Tesoura” (1990), quando Johnny Depp ainda conseguia convencer como algo a mais que a caricatura de si mesmo e estrelava um conto de fada muito mais emocionante que o posterior “Alice no País das Maravilhas” (2010).
Após uma série de trabalhos irregulares e carentes de alma tanto quanto foram carregados de exageros, Tim Burton prometia voltar à velha forma com “Grandes Olhos”. A seu favor está o elenco de atores competentes, com Amy Adams e Christoph Waltz. A trama, baseada em fatos reais, conta a história de Margaret Keane (Adams), artista plástica que teve seus quadros conhecidos no mundo inteiro, porém, como se o marido, o canastrão Walter (Waltz), fosse o verdadeiro autor das obras.
O primeiro terço de “Grandes Olhos” é assustadoramente apressado, prometendo um tipo de irregularidade narrativa estranha até mesmo à Burton. Os diálogos atingem um absurdo didatismo, com Walter questionando Margaret acerca dos grandes olhos das figuras que ela pinta repetidamente. As falas só não são mais irritantes porque Adams consegue suavizar a atuação tresloucada de Waltz, num estilo que definitivamente não combina com ele, embora se encaixe melhor ao personagem a partir do segundo terço do filme e, em especial, nos momentos em que Walter começa a assumir a autoria das obras de sua esposa.
Como bem diz o narrador do filme: “Walter Keane não era um homem sutil. Sutileza não vende”. Talvez esse seja o lema da vida de Burton, o que justificaria ele dar tanto tempo de tela a Waltz e não a Adams. Uma pena, porque no geral é a atuação dela que traz equilíbrio e dignidade ao filme, mesmo quando destaca a falta de desenvoltura da personagem no universo fascinante e efervescente da arte durante os anos 1960.
É sintomático perceber alguns nomes nos créditos que podem explicar, talvez, o que impede “Grandes Olhos” de ser um filme acima da media. Burton já não vinha acertando a mão ultimamente com “Sombras da Noite” (2012) e “Alice no País das Maravilhas” (2010), tendo algum respiro com “Sweeney Tood” (2007) e a animação “A Noiva Cadáver” (2005), que seguiu o esquecível remake “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005). Em “Grandes Olhos”, ele retoma a parceria antiga com os roteiristas Scott Alexander e Larry Karaszewski, responsáveis, inclusive, pelo roteiro de um dos melhores filmes de Burton, “Ed Wood” (1994). O problema dessa equação parece ser mesmo a edição de Joseph C. Bond, que editou (adivinha?) “Sombras da Noite” (2012) e “Alice no País das Maravilhas” (2010), além de “Malévola” (2014) e um dos episódios da franquia Harry Potter. Seja o início apressado do filme, o destaque insistente para Waltz ou a rapidez do arco que soluciona um ponto crucial na vida de Margaret ao final do filme, a montagem parece quase sempre desviar o olhar de “Grandes Olhos” para o que deveria estar em evidência.
Por sorte, o filme consegue ganhar fôlego aos poucos, quando as mentiras de Walter Keane tomam novas proporções e os quadros se tornam sucesso de vendas, aliadas ao faro para negócios, falta de escrúpulos e “network” do “artista”. Quanto maior esse sucesso, mais sentido faz a atuação de Waltz, o que não impede o ator de pesar a mão em momentos cruciais como quando, quase ao final do filme, tem-se um julgamento de crucial importância para os personagens. Nesse sentido, tanto o roteiro quanto a direção deixam a desejar para com o ator, não importa o quanto ele apareça na extensão do filme.
Se muito se fala de Walter até então é porque a personagem de Adams passa a primeira metade do filme em posição passiva, quase apagada. De certa maneira, há um sentido nessa escolha que, em primeiro momento, desagrada. Justifica-se essa opção no fato de que Margaret, ao contrário de Burton, não é, por ela mesma, um indivíduo que fascina da maneira que seus quadros: é uma dona de casa, uma mulher submissa e fruto de um background pouco ou nada impactante em termos de possibilidades de representação audiovisual para além de suas vivências internas, com a qual o diretor flerta em breves momentos ao trazer os grandes olhos das pinturas para a família numa fila de supermercado, por exemplo. E assim Burton se prende à figura de Keane, o marido, encantado pela malandragem e compulsividade de suas mentiras. Em resumo, o diretor parece mais interessado no exagero que no personagem principal…
O engraçado é que, não que aparente ser essa a intenção de Burton, mas por mais que esse fascínio chato martele o filme e o puxe para baixo, ainda assim ele mostra como é bom ver um artista fazer mais que ser. Margaret está longe de surgir nas telas como uma artista no sentido clichê das representações de um (um ser egocêntrico, por vezes infantil, um tanto louco e expansivo). É por isso que quando o roteiro se volta para ela, o filme se renova e traz um personagem pelo qual podemos sentir empatia em um nível muito diferente do que Burton tem criado ultimamente com os personagens caricatos feitos ao molde de Johnny Depp. Margaret, ao contrário de tudo isso, interessa-se mais em prover segurança financeira à vida de sua filha (um dos motivos pelo qual se subordina às mentiras do marido), desenvolver o estilo de suas obras e dar vazão à sua curiosidade e autoconhecimento, seja através da leitura de livros de numerologia ou se tornando Testemunha de Jeová. Enfim, coisas bem “quadradas”, em especial, para os loucos anos 1960 em que se passam o filme.
Além de Adams, outro destaque do filme é o belo figurino, que, aliado à direção de fotografia, dá um ar como que onírico ao filme. As cores, mesmo as mais suaves, são carregadas, brilhantes, uma opção que casa com os momentos iniciais de felicidade de Margaret ao encontrar o homem que acreditava que traria sua tão sonhada tranqüilidade e estabilidade, ou nos momentos em que a trama se passa no Havaí. Todo brilho, ironicamente, torna-se mais contido justamente nas cenas em galerias, exposições e points de artistas.
A distinção entre os figurinos dos dois personagens principais também compõem um quadro interessante. Há a manjada dominância do preto nos modelitos beatniks, nos momentos em que Walter e Margaret pintam ao ar livre ou vendem suas obras logo no comecinho do filme. Em seguida, surgem mais quentes para Walter quando ele vai ficando famoso, enquanto que Margaret continua presa às mesmas cores (branco e tons de creme e azul). Essas cores, aliás, repetem-se para os figurantes nas ruas ou no supermercado, mostrando a ligação da artista a atividades cotidianas muito mais que com a fama que suas obras atingem nas mãos do marido. É um item que merece ser citado num filme de Burton, uma vez que é um alívio ver algo diferente das fantasias malucas que inundaram seu filmes mais recentes.
De maneira geral, é bom ver as tentativas de Burton de retomar o equilíbrio entre o estranho e o comum em “Grandes Olhos”. Ainda que tenha resultado irregular, o filme tem seus pontos fortes, em especial na figura de Amy Adams, apesar das tentativas de sabotagem por parte do diretor.