Do livro de Jó: "Você consegue pescar com anzol o Leviatã ou prender sua língua com uma corda? [...] Acha que ele vai fazer acordo com você, para que o tenha como escravo pelo resto da vida? [...] Se puser a mão nele, a luta ficará em sua memória, e nunca mais você tornará a fazê-lo. Esperar vencê-lo é ilusão; apenas vê-lo já é assustador".
O único ponto redundante do roteiro de “Leviatã” foi a necessidade que o diretor Andrey Zvyagintsev (que escreveu o guião ao lado de Oleg Negin) sentiu de deixar explícita a ligação entre a trama do longa e a parábola bíblica de Jó. No entanto, o Leviatã enfrentado pelo protagonista aqui não é um monstro marinho ou besta infernal, mas algo mais insidioso e prosaico, que destrói vidas humanas ao manipular o estado democrático de direito através de conchavos e jogos de influências.
Na trama, Vadim (Roman Madyanov), um prefeito corrupto e sem o menor pudor, deseja tomar as terras de Kolya (Alexey Serebryakov), um pai de família comum. Vadim planeja desapropriar a propriedade por uma ninharia, usando fundamentações mentirosas para o ato, que visa uma “parceria público-privada” que será altamente lucrativa para o político.
Para se defender, Kolya conta com a ajuda de Dmitri (Vladimir Vdovitchenkov), um velho amigo dos tempos de exército que se tornou um advogado renomado. Enquanto o conflito se arrasta, os relacionamentos de Kolya se deterioraram, especialmente seu casamento com a bela e deprimida Lilya (Elena Lyadova).
É notável como este candidato russo ao Oscar de melhor filme estrangeiro não se esquiva de suas mensagens políticas, batendo sem dó ou piedade nos atuais (e pretéritos) mandatários locais, vide o uso de líderes soviéticos como alvos de tiro, o retrato de Vladmir Putin em destaque no escritório de Vadim, e o fato de que o ator Roman Madyanov parece estar caracterizado como o folclórico presidente ébrio Boris Yeltsin, especialmente quando Vadim surge alcoolizado.
Zvyagintsev nos mostra uma narrativa triste – e real – na qual verossimilhança e desdobramentos dignos de “O Processo”, imortal livro de Franz Kafka, caminham juntos, graças ao câncer chamado corrupção. O absurdo de mentiras deslavadas ganhando status de verdades e decisões jurídicas viciadas lidas em uma velocidade quase que cômica revelam que, ali, o poder importa mais que a justiça, algo não muito distante do nosso Brasil, diga-se.
O norte da Rússia pintado pelo filme, por vezes, mais parece um presente pós-apocalíptico, a despeito de ser bastante real. A vodka é o que anestesia os habitantes deste lugar desolado. Neste cenário cínico e secular, a religião inexistente como forma de alento e serve apenas como mais uma instância na qual Vadim se infiltra e usa para justificar seu poder, vide seus diálogos com um bispo (que são mais sobre negócios do que Deus) ou mesmo a inútil conversa entre Kolya e um padre local – cena onde o título do filme é esmiuçado .
Inicialmente, a resignação não parece ser uma opção para os protagonistas que, aos poucos, percebem a força do monstro que enfrentam, não havendo outra opção senão o desespero diante a força deste adversário, com Vadim demonstrando ser o verdadeiro leviatã que assola aquela cidade.
Nisso, Alexey Serebryako e Vladimir Vdovitchenkov são hábeis ao compor os dois amigos não como heróis perfeitos para se contraporem ao antagonista fisica e psicologicamente monstruoso que combatem. Kolya e Dmitri são homens falhos, que muitas vezes agem movidos por suas paixões – eventualmente com resultados desastrosos para si e para aqueles que os cercam.
Entre esses dois homens, Lilya vive um cotidiano triste e depressivo, revelando uma mulher que busca desesperadamente qualquer indício de alegria que a faça levantar pela manhã. Seu papel na história se alterna entre o passivo e o de um catalisador.
Os esqueletos de baleias que cercam a propriedade de Kolya mostram que os leviatãs de outrora estão mortos, substituídos por criaturas ainda mais destruidoras e que andam desapercebidas entre o povo, usando seu poder para esmagar aqueles que consideram inferiores como se estes fossem “piolhos”, expressão esta usada pelo próprio Vadim. O mais triste sobre “Leviatã” é que o longa poderia ser adaptado para o Brasil sem muito esforço e sem fugir da nossa vida real.