Deslizes e acertos coexistem num filme de tema incomum: os primórdios do conhecimento médico.
Adaptações de obras literárias para o cinema podem se configurar em agradáveis surpresas ou em armadilhas traiçoeiras para os realizadores. No primeiro caso, vemos as potencialidades de uma narrativa construída a partir da linguagem escrita extrapolarem positivamente para a visualidade própria do audiovisual, construindo mundos antes apenas imaginados e fascinando os sentidos do espectador da maneira particular que o cinema enquanto meio sabe muito bem fazer. Já no segundo caso, o da armadilha, vemos a inventividade da literatura claramente superar os artifícios do cinema, incapaz de conferir a mesma atmosfera da obra original. “O Físico” tenta se equilibrar entre esses dois extremos.
Comecemos pela trama, adaptada do livro “The Physician” (ou “O Médico”, em português), de Noah Gordon: Rob Cole (Tom Payne) é um jovem cuja mãe morre quando ele ainda é menino, e que acaba sendo criado por um “Barbeiro” (Stellan Skarsgård). As aspas em barbeiro têm razão de ser, uma vez que, no século XI em que se passa a trama, isso quer dizer que o homem é uma mistura de bruxo, charlatão e médico. Com ele, Rob é iniciado na prática (ou pelo menos nas tentativas) de curar doenças, e com ele aprende que muito dessa prática é rechaçada pela Igreja Católica, dominante dos céus e da terra no mundo ocidental da época.
Ao entrar em contato com curandeiros judeus, Rob vê os horizontes do que viria a ser chamado de medicina se expandir. Ele deseja mais que tudo aprender como tratar doenças. Aí começa a sua jornada até a Pérsia, onde vive o maior médico da época, Ibn Sina (Ben Kingsley), com quem o jovem deseja aprender tudo. A aventura tem como desafio extra o fato de que nas terras de domínio árabe, os cristãos são terminantemente proibidos, o que obriga Rob a se disfarçar como judeu. No meio de tudo isso, Rob ainda tem tempo de se apaixonar por Rebecca (Emma Rigby), uma jovem de casamento marcado com outro homem.
Em seu primeiro terço, “O Físico” consegue chamar a atenção para a história e cativar um mínimo possível o público com a apresentação dos personagens. Em um mundo absolutamente miserável como o que vagam os personagens de Rob e do Barbeiro, Skarsgård consegue ser divertido sem destoar desse contexto, trazendo um equilíbrio à figura não tão empolgante de Payne como o protagonista. É o Barbeiro que humaniza o jovem aprendiz, por meio de suas imperfeições e fragilidades, as quais servem de suporte para aproximar o emocional do público à história.
Saindo da atuação para a direção, esta possui certo didatismo ao apresentar a história a partir de quebras temporais nada sutis, conferindo um ar de passagem de um capítulo ao outro na leitura de um livro. Esse didatismo se vê também no plano visual a partir da direção de arte, que faz questão de exibir uma Europa extremamente nojenta em cada detalhe (como de fato era no século XI), em conjunto com a fotografia, que cobre o mundo ocidental de cores frias e baixa saturação. Os poucos planos gerais expostos enquanto Rob está na Europa também seguem um simbolismo sutil, embora muito utilizado, para metaforizar as limitações que aquele universo dava às aspirações do jovem, o que se transforma também em nível visual quando ele chega à Ispahan, na Pérsia, com planos mais variados e mais movimentos de câmera.
Chegando ao oriente, o que era para ser o ápice do filme acaba sendo seu ponto mais controverso. As cores (adivinha?) fluem para os tons terrosos e quentes, assim como as vestimentas e cenários se transformam drasticamente, destacando-se aí a assepsia dos locais de prática médica de Ibn Sina, em nada relacionada à podreira das tendas improvisadas na Europa.
A longa duração do filme (2h30) começa a ficar mais perceptível depois de passar a primeira hora, quando a trama muda para Ispahan. Ben Kingsley surge como o sábio Ibn Sina e desde o primeiro instante sua figura é enigmática. Porém, o investimento no cultivo da relação entre Rob (que agora assume o nome de Jesse Ben Benjamin) e Ibn não engrena tão bem como entre ele e o Barbeiro. Também soam corridas as cenas que poderiam dar conta de detalhar a genialidade de Ibn (uma figura que realmente existiu) como um intelectual entendido em diversos saberes, mostrando um pouco de uma época em que as ciências ainda não eram tão separadas em seus devidos espaços de especialização.
Com uma história e subtextos tão fascinantes, preciosos minutos são desperdiçados com a história de amor impossível entre Rob e a apagada Rebecca. A escolha parece querer aproximar “O físico” de vários outros filmes comerciais que contam com a muleta do romance como desculpa para a inserção de personagens femininas (geralmente unidimensionais). Não precisava: esse é um filme sobre feitos que, na época, eram apenas de homens, e não necessariamente isso mina suas qualidades; o conhecimento é a verdadeira estrela, embora isso não pareça tão rentável à primeira vista. Da mesma maneira, o “vilão” é a condenação desse então novo conhecimento à obscuridade promovida pelas religiões enquanto forças políticas imbatíveis na época. Se o espectador focar nesses aspectos, pode esbarrar num bom filme.