David Fincher reflete sobre a sociedade do espetáculo a partir de best-seller de Gillian Flynn.
O agendamento da mídia determina as pautas que são noticiadas na imprensa, destacando temas que devem ser discutidos e acompanhados pela opinião pública. Grandes escândalos estão sempre em alta e a imprensa provoca a reação e a curiosidade do leitor, que passa a acompanhar essas histórias diariamente, quase como quem vê uma novela ou um reality show. O público vai formando o seu ponto de vista a partir do que é mostrado e, algumas vezes, tem a consciência de que nem tudo é como realmente foi dito. Em certos casos, a abordagem é superestimada, principalmente pelos veículos sensacionalistas, que fazem de tudo pela audiência, inclusive especular ou mentir demais. Os jornais e emissoras insistem no assunto até que uma nova pauta substitua a anterior e cause o mesmo estardalhaço.
Em 2002, quando Suzane Von Richthofen foi acusada de ter ajudado o namorado a matar os próprios pais, a pauta virou comoção não só pelo absurdo que fere a base familiar, mas por tudo que poderia render na imprensa. O público é curioso e justiceiro. Por muito tempo, só se falou sobre o assunto e até hoje a história é repescada quando convém (como estou fazendo agora). Dito isso, dois pontos antes de falar sobre “Garota Exemplar”: a mídia está interessada em cliques e em espectadores conectados no turbilhão de notícias e os conflitos familiares, políticos e sociais serão sempre um prato cheio para alimentar a imprensa. Resta saber como a recepção da informação pode ou não ter caído no absurdo. Manter a criticidade, mesmo sabendo que tudo é possível, aparenta ser a melhor saída.
Sendo assim, ter Gillian Flynn como roteirista deste novo filme de David Fincher é absurdamente necessário. A experiente jornalista, que já passou pela Entertainment Weekly, conhece de perto essa relação entre imprensa e público. Ao escrever o livro que deu origem ao filme, o êxito está ao organizar muito bem o andamento dos conflitos e das revelações do caso da família Dunne. Flynn faz o mesmo no roteiro. Ciente de que leves alterações são necessárias, a autora jamais desrespeita o material que criou. Assim, o único risco que corre é de não oferecer tanto mistério a quem já conhece o desfecho do livro, mas “Garota Exemplar” consegue amarrar sua proposta cinematográfica. Afinal, é natural que os espectadores fiquem instigados para saber o que está por trás daquilo tudo.
A trama começa com o desaparecimento de Amy Dunne (Rosamund Pike) no dia do quinto aniversário de casamento. O fato logo chega à polícia após denúncia do marido, Nick Dunne (Ben Affleck). O problema é que o jogo de informações parece não fazer muito sentido e a fatalidade rapidamente ganha o assédio da imprensa. Nick logo se torna o principal acusado pelo desaparecimento e, a partir de então, passamos a saber que a vida conjugal deles não era bem um conto de fadas. Nick estaria escondendo algo ou estaria aliviado com a partida da esposa? Até onde o diário de Amy seria legítimo ao relatar a vida do casal? Ao lado da irmã gêmea Margo (Carrie Coon) e da detetive Rhonda (Kim Dickens), Nick mergulha em um passado não muito distante para tentar provar inocência e descobrir o paradeiro de Amy.
Sabendo da astúcia da trama de Flynn, David Fincher parece ser mais do que adequado para a direção. Ao trabalhar com o mistério gradativo, o cineasta invade o íntimo daqueles personagens, do mais relevante ao passante, para jogar um olhar, acima de tudo, para a nova vida americana, enfeitada demais por fora e caótica por dentro. Afinal, ninguém conhece ninguém. O que acontece dentro das casas nem sempre se torna público, nem mesmo para o vizinho. As aparências enganam e as relações, cada vez mais rápidas, podem mostrar certa conveniência. Fincher cria um filme cru com o objetivo de trazer essa realidade para as telas. A beleza estonteante de Amy logo se transforma em um fantasma, enquanto Nick parece mais preocupado em provar a inocência do que ter a esposa de volta.
Ben Affleck constrói seu personagem com bastante segurança, mas é Rosamund Pike a responsável por uma grandiosa performance. A bela esposa exemplar, criada no mundo literário dos pais, vai se transformando com magnetismo em cena. A dedicação de Pike é monstruosa e, sem ela, o filme provavelmente não teria o mesmo impacto. Detalhar mais seus méritos como atriz seria entregar informações demais sobre a trama, então paro por aqui. Destaque também para Carrie Coon e Kim Dickens, essenciais para o desenrolar do caso e que roubam as cenas em que aparecem. Mais atrás, Neil Patrick Harris faz o que pode com o personagem conveniente que lhe é dado, enquanto Missi Pyle, como Ellen Abbot, não foge muito do que se espera de uma jornalista sensacionalista.
“Garota Exemplar” ainda conta com mais uma bela parceria dos músicos Trent Reznor e Atticus Ross, que colaboram para a atmosfera de mistério, tragédia e redenção da trama. Sem ser invasiva demais, a trilha sonora acerta ao não forçar emoções e reações do espectador, sublinhando com leveza o que é importante. A montagem de Kirk Baxter é bastante feliz ao trabalhar os flashbacks e o amontoado de informações deste grande jogo, reduzindo as perdas e se desviando de possíveis abismos que poderiam prejudicar o andamento do filme. Assim, Fincher, mais uma vez, trabalha com as pessoas certas em um projeto ambicioso para mostrar que a sociedade do espetáculo nunca pareceu tão familiar e instigante.