O cineasta francês mostra que pode não entender muito de ciências, mas sabe muito bem como fazer um filme de ação - e com conteúdo.
Luc Besson é um aficionado por ficção científica e anime. Mesmo que sua filmografia não se volte especificamente para o sci-fi, as referências de mestres do gênero e da animação japonesa são notáveis em suas obras. Quase duas décadas após o divertido “O Quinto Elemento”, o cineasta francês volta a escrever e dirigir uma obra na qual pôde dar vazão a essas paixões de maneira mais explícita neste “Lucy”, cujo título remete ao apelido dado à ossada da Australopithecus afarensis descoberta em 1974.
Ignore completamente a tecnobaboseira. Boa parte da ciência do filme é completamente errada e é ótimo que o próprio Besson (e o longa em si) admita isso. O mito do ser humano utilizar apenas 10% do seu potencial cerebral é equivocado, mas a fita faz dela um ótimo pontapé inicial para sua premissa, que mistura as partes mais cerebrais de “2001 – Uma Odisséia no Espaço”, “A Origem”, um certo episódio de “Jornada nas Estrelas – A Nova Geração”, “Serial Experiments Lain” e “Akira” com a brutalidade graciosa de “O Profissional”.
Lucy (Scarlett Johansson) é uma jovem modelo/atriz em Taiwan que é forçada por seu namorado a fazer uma entrega para um perigoso chefe do submundo coreano (Min-Sik Choi). Obrigada a trabalhar como “mula” transportando uma droga experimental, a substância acaba vazando para o seu organismo, permitindo o acesso a áreas antes desconhecidas de seu cérebro. Com a ajuda de um neurocientista (Morgan Freeman) e de um policial francês (Amr Waked), Lucy corre contra o tempo para entender e realizar seu destino.
Uma das virtudes de Besson é a capacidade que ele tem de contar uma história de maneira direta e econômica, sem perder muito tempo com enrolação. Em “Lucy”, mesmo exagerando no uso de metáforas visuais, a agilidade da narrativa mantém o público em estado de tensão quase que permanente, deixando pouco tempo para pensar nas besteiras científicas que são jogadas pelo roteiro.
O cineasta também escapa da armadilha de se criar uma protagonista excessivamente poderosa a ponto de destruir o temor do público por seu destino. A Lucy de Scarlett Johansson chega inicialmente como uma moça comum e indefesa, passando para um estado quase que divino no final do primeiro ato da projeção.
A partir deste ponto, o modo de agir da atriz em cena muda porque a personagem não é mais a mesma e a percepção que ela tem de si e do ser humano também muda radicalmente. O drama interno de Lucy é a sua fragilidade e o que dá coesão e substância às cenas de ação. A função do policial Pierre, que passa a acompanhar Lucy em sua jornada, é ser a âncora de humanidade da narrativa e o lembrete para esse ser divino do que ela outrora foi. Tendo em vista que a importância de Pierre é justamente ser desimportante, perdoa-se a relativa falta de carisma de Amr Waked. O policial é basicamente uma folha em branco que deve ser preenchida pelo próprio espectador, que assim se sente como o companheiro de Lucy em sua jornada.
Considerando a atuação de Scarlett aqui e no fascinante “Sob a Pele”, temos dois projetos, lançados um próximo ao outro, mas radicalmente diferentes, onde a questão humana é examinada por ela à distância, com a bela atriz se mostrando igualmente competente em ambos os papéis. Johansson carrega a produção com segurança e maturidade, conquistando a simpatia do público nos momentos iniciais pela vulnerabilidade de sua personagem e arrebatando-o após a transformação de Lucy. Só é uma pena ver Morgan Freeman desperdiçado em uma atuação expositiva, relegado a emprestar sua voz e credibilidade à “ciência” do filme.
Luc Besson conduz as cenas de ação com sua maestria técnica habitual, fazendo bom uso das locações externas europeias e asiáticas, especialmente em uma corrida automobilística no meio de Paris, na qual as câmeras IMAX realmente fizeram a diferença. Ressalto ainda o bom retrato visual das habilidades de Lucy e a bela trilha sonora de Eric Serra, antigo colaborador de Besson, cujas composições oscilam entre o evocativo, o bizarro e o empolgante.
“Lucy” é um eficiente filme de ação e uma péssima aula de ciências, se saindo bem melhor ao explorar as consequências e responsabilidades de uma quase divindade (e em mostrar quantos traseiros esta consegue chutar em 90 minutos).