Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 18 de julho de 2014

Entre Vales (2012): uma análise profunda sobre perdas e mudanças

Drama repleto de sutilezas e a consagração de Ângelo Antônio.

Até que ponto grandes mudanças podem mexer na vida de uma pessoa? O que é preciso acontecer com alguém, o que é preciso perder pelo caminho, para que sua vida deixe de fazer sentido e torne necessário abandonar tudo aquilo pelo que lutamos e trabalhamos ao longo de nossa existência? Essas e outras questões são debatidas de forma sutil em “Entre Vales”, obra premiada de Phillipe Barcinski.

Vicente (Ângelo Antônio) é um economista que trabalha em uma empresa de consultoria, especializada em serviços sanitários. Ele é pai de Caio (Matheus Restiffe), fruto de seu casamento com Marina (Melissa Vettore). No entanto, depois de várias mudanças em sua vida, ele vai do céu ao inferno em um curto espaço de tempo.

Esta sinopse, aparentemente batida, poderia facilmente se tornar um mero “produto” cinematográfico, com uma história simples e monótona que, com os artifícios certos, atingiria grande parte do público, teria uma bilheteria considerável e iria alçar o nome do diretor e roteirista Phillipe Barcinski a novos sucessos em dramas fáceis ou comédias globais. Porém, a primeira preocupação de um artista não é com o resultado financeiro de sua obra, e sim em realizar um trabalho de alta qualidade, ser reconhecido por seus pares e por seu público, ainda que restrito. E nisso os realizadores acertaram em cheio.

Apesar de alguns problemas de ritmo no início, quando ainda estamos nos familiarizando com os personagens, a trama segue com fluidez, alternando vários momentos da vida de Vicente. E essa constante alternância da narrativa, além de exacerbar o contraste entre tais momentos, instiga a curiosidade do público para descobrir como houve uma mudança tão brusca na vida daquele homem, em especial, e qual foi o acontecimento fundamental para essa ruptura.

Ângelo Antônio consegue transmitir todos os sentimentos e as angústias de seu personagem com uma interpretação arrebatadora. A vida monótona e depressiva de Vicente é construída aos poucos, em pequenos detalhes de sua interpretação, porém ainda existem pequenas faíscas em seu olhar, como quando está em ação no seu trabalho ou quando passa algum tempo próximo ao filho. Entretanto, quando o vemos em seu segundo momento, percebemos que aquela chama está totalmente extinta. Vicente se torna alguém que simplesmente sobrevive, que vive um dia após o outro.

Todo esse caldeirão de emoções é completo pelos demais elementos visuais: a fotografia saturada, quase em preto e branco, utilizada nos lixões por onde o protagonista passa, reforça aquela solidão, assim como nas passagens no escritórios das empresas onde ele frequenta. As únicas cenas em que vemos cores vivas e quentes são aquelas compartilhadas por Vicente e Caio.

Outro grande mérito do filme reside nos subtextos e alegorias visuais, espalhados por toda a fita: a purificação pela água, as rimas visuais, ainda que óbvias, como o fato de Vicente ir morar no lixo; uma esteira por onde correm toneladas de lixo que remetem a um fato marcante de sua vida e até a sutileza do título da obra, que remete aos altos e baixos pelos quais os personagens passam.

Para coroar e unir tamanho esmero técnico surge o trabalho excepcional de Barcinski, ele consegue reunir o talento de Ângelo Antônio (ainda que não consiga extrair grande coisa dos demais membros do elenco), com a simplicidade da trilha sonora (inteligentemente ausente por quase toda a projeção) e a primorosa montagem de forma coesa e equilibrada. Por tudo isso, ficam perfeitamente justificados todos os prêmios recebidos em diversas mostras e festivais.

David Arrais
@davidarrais

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