Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 16 de maio de 2014

Praia do Futuro (2014): destruição e recriação de um homem partido ao meio

A tragédia de uma pessoa que sai em busca de si é o estrago que essa procura pode causar na vida dos outros.

Praia do Futuro_Em uma conversa casual, poucos dias antes da estreia de “Praia do Futuro”, comentei com um amigo sobre a impossibilidade de construir edificações na área de Fortaleza que dá título ao filme, justamente por conta de fatores naturais particulares daquele lugar. Engraçado ver como o cineasta cearense Karim Aïnouz (“Madame Satã”, “O Céu de Suely”) se aproveitou desse fato local para servir de metáfora para uma história cujo espírito é universal.

O roteiro do longa, escrito por Aïnouz e seu colaborador recorrente Felipe Bragança, também trabalha com a subversão da figura do herói, algo que pode ser visto até nos apelidos dados aos três personagens centrais da narrativa (Aquaman, Motoqueiro Fantasma e Speed Racer). Uma brincadeira com o ponto de vista infantil pelo qual eles são identificados em dado ponto na narrativa, o que faz uma justaposição ao tom realista e dramático que toma conta do restante da produção, com a desconstrução que a própria vida faz das figuras heroicas que tínhamos na infância.

Conhecemos Donato (Wagner Moura), um competente salva-vidas da Praia do Futuro que parece ter uma vida controlada, sendo uma figura de adoração do seu irmão mais novo, o pequeno Ayrton (Sávio Ygor Ramos). Certo dia, ele falha em resgatar um alemão, que acaba por se afogar. Donato, após noticiar a morte do turista ao amigo do falecido, o motociclista Konrad (Clemens Schick), começa um relacionamento amoroso com o estrangeiro, em uma relação que revoluciona sua vida e o afasta do mundo que conhecia.

Fugindo um pouco de seu estilo mais direto de contar histórias, Aïnouz adota uma narrativa partida em três capítulos, com a trama se estendendo por quase uma década, tendo um salto temporal maior do segundo para o terceiro ato, focado na busca de uma Ayrton adulto (Jesuíta Barbosa) pelo seu irmão. No entanto, o tema da procura do ser humano por algo – seja esse algo subjetivo ou objetivo – é recorrente na filmografia do diretor.

O pilar da produção é Donato, que está atrás de se construir como pessoa, sem depender de definições externas. A impossibilidade de serem erguidas edificações na Praia do Futuro encontra eco nos dilemas encontrados pelo salva-vidas, preso em uma cultura incapaz de entender o que ele está passando, até pela dificuldade que ele mesmo sente em comunicar isso.

Deste modo, Wagner Moura tem nas mãos um personagem com muito a dizer, mas que fala pouco, com o ator trazendo ao papel uma necessária fisicalidade, com muito da personalidade de Donato sendo transmitida pela linguagem corporal do mesmo em momentos nos quais as palavras se mostram supérfluas.

Mesmo anos depois de destruir e reconstruir a sua autoimagem, Donato ainda se mostra incomodado em expressar o que sente de maneira verbal, com as ações importando mais do que suas palavras.

O amor de Donato por Konrad, a despeito do entrosamento e química entre Moura e Clemens Schick, funciona mais como o impulso para as mudanças na vida de Donato, havendo até mesmo um distanciamento maior entre eles no terceiro ato, no qual a relação entre os irmãos assume o foco central da história.

Apesar disso, Moura e Schick possuem momentos fenomenais juntos, especialmente durante a discussão entre eles em meio a neve e a despedida no metrô, havendo ali um turbilhão de emoções e energias diferentes, capturado com sensibilidade e maestria pelas câmeras de Ainouz e do diretor de fotografia Ali Olay Gözkaya.

O visual do longa, aliás, diferencia os dois mundos ali retratados, a Praia do Futuro e Berlim, e mostra o abismo existente entre os locais, tão grande quanto o vazio que existia no peito de Donato. Tem-se também uma valorização da figura masculina, o que ressalta onde jaz o foco do roteiro.

O ponto mais difícil do filme é, sem dúvida, o seu terceiro ato, no qual Donato e Ayrton lidam com os eventos que transformaram o primeiro em “um fantasma que fala alemão”. Em momento algum da narrativa o pai dos rapazes é sequer citado, o que faz de Donato a figura paterna do irmão mais novo. Mesmo a mãe deles, muito mencionada e nunca vista, mostra-se mais um membro amputado que continua a doer do que uma fonte de alento.

Esses fatores tornam a ruptura abrupta entre Donato e sua família muito mais traumática, não apenas justificando a raiva e a intensidade exibidas pelo Ayrton de Jesuíta Barbosa, mas também gerando um contraste doloroso com a versão jovem, amorosa e inocente do personagem, vivida de maneira doce e espontânea por Sávio Ygor Ramos. A colaboração entre os dois intérpretes faz com que seja fácil identificar que os dois vivem lados diferentes de uma mesma pessoa, em um trabalho fascinante.

Ayrton cobra de Donato explicações sobre o abandono do qual fora vítima, um ato de egoísmo que nem o salva-vidas, o filme ou Wagner Moura conseguem fazer verbalmente. A tragédia de Donato é que, para construir quem ele queria ser, ele precisou destruir quem era, com Ayrton sendo uma das vítimas dos escombros de sua vida passada. Em meio às brumas que se destacam no plano que encerra a produção, esperamos que aqueles homens que saem velozmente em busca de um pouco de felicidade consigam encontrar algum alento e compreensão.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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