Combinando a escala dos antigos épicos religiosos de Cecil B. DeMille com a paixão de Darren Aronofsky por personagens atormentados por obsessões, o longa atinge sua plenitude quando concentra-se mais no lado humano e deixa a prefação de suas mensagens de lado.
É impossível para qualquer cineasta adaptar de maneira 100% fiel qualquer obra literária para a sétima arte. Por mais próxima que a adaptação seja do original, mudanças são inevitáveis, sejam estas leves ou grandes, o que certamente deixa a obra derivada a mercê de críticas ferrenhas por parte dos puristas.
O problema é mais grave quando se trata de textos religiosos, de qualquer religião. Isso porque o realizador está a lidar com um material tido literalmente como sagrado por parte do público. No caso deste “Noé”, temos Darren Aronofsky transpondo uma passagem relativamente curta do Antigo Testamento em um épico cinematográfico com elementos de fantasia e drama psicológico.
No caso, Aronofsky (nascido judeu e hoje ateu) expõe na tela com a ajuda de seu elenco e equipe uma visão de um trecho complicadíssimo do livro de Gênesis, uma visão que está em gestação há anos, transformando o que poderia ser um filme-desastre bíblico em um animal completamente diferente e bem mais complexo. Ele entende que algo tirado do Pentateuco não pode ser interpretado de maneira literal, e arrisca-se ao mixar o seu entendimento da parábola do dilúvio com sua própria visão artística, algo raro em uma época na qual as grandes produtoras procuram o lucro em filmes de fácil digestão.
Destarte, o objeto de análise deste texto não é a figura de Noé, parte das crenças de cristãos, judeus e muçulmanos, mas sim o filme homônimo dirigido por Aronofsky e escrito pelo próprio diretor e seu colaborador habitual, Ari Handel. O que interessa aqui é se essa visão dos realizadores corresponde a uma boa história, ignorando quaisquer preconceitos de ordem religiosa.
Ao contrário do que era esperado, “Noé” se trata de um dos filmes mais pessoais do diretor. Trata-se de um contundente mergulho audiovisual na própria experiência religiosa de Aronofsky, que abraça o criacionismo e o evolucionismo ao mesmo tempo (inclusive em uma mesma cena), além de continuar com o estudo de personagens que se afogam em suas próprias obsessões, tema comum a todos os filmes do diretor desde “Pi”.
O Noé de Russell Crowe é um homem valoroso, descendente direto da linhagem de Adão e Eva. Em meio a sanha devastadora, extrativista e sanguinária do homem, representada pelo “monarca” Tubal-Caim (Ray Winstone), o Criador decide destruir o que havia gerado e incumbe Noé de construir uma arca para salvaguardar os animais, um casal de cada, bem como sua própria família.
O sofrimento crescente de Noé vem de sua incapacidade de compreender as visões que o Criador lhe envia. Diante da monumental tarefa que lhe é imposta, como um homem pode fazer ouvidos surdos perante o sofrimento de seus pares e de sua própria família?
É a partir desse questionamento que Aronofsky trabalha o seu protagonista, com Russell Crowe defendendo de maneira esplêndida a perturbação psicológica crescente que a devoção cega de Noé à sua missão provoca. A loucura fundamentalista de Noé contradiz os seus próprios valores, levando a um sofrimento que destrói aos poucos a fortaleza que aquele homem representava quando fora apresentado em cena.
Ao mesmo tempo, vemos que o antagonista Tubal-Caim age como um filho rebelde desejoso da atenção de seu Pai, em uma busca incessante para que o Criador lhe dê algum alento, com seus apelos aparentemente não encontrando respostas, algo que alimenta ainda mais a sua ira. O próprio discurso antropocentrista do personagem, proclamado com segurança absoluta por Winstone, é deveras sedutor.
É uma pena que, eventualmente, essa complexidade seja deixada de lado e dê lugar a atos extremamente maniqueístas por parte do vilão. Neste sentido, o texto de Aronofsky e Handel por vezes artificial, especialmente ao defender de maneira exacerbada o vegetarianismo dos “mocinhos” e ao vilanificar brutalmente o antropocentrismo, chegando ao ponto de Noé e sua família se diferenciarem dos demais humanos de maneira textual (“Homens”) e a silhueta dos personagens rasgar o cenário natural, como se não fizesse parte dele (elemento narrativo também presente em “Fonte da Vida”).
Os três atos da história são extremamente bem definidos (até mesmo visualmente, pela fotografia de Matthew Libatique), cada um representando uma etapa da grandiosa trama, passando da jornada de Noé e sua família até a montanha do patriarca Matusalém, os dias que precedem o dilúvio e o desespero da humanidade, descambando, finalmente, no confinamento dos personagens principais na arca até as águas baixarem. Cada um desses atos mostra Noé afundando, aos poucos, em sua própria angústia e obsessão, ao tentar entender os desígnios divinos que lhe foram confiados.
Aronofsky amplia e/ou modifica – a depender do ponto de vista – conceitos citados de maneira superficial pelo livro de Gênesis, como os Guardiões (“Havia naqueles dias gigantes na terra”), que ganham uma bela origem e um papel de destaque na película, bem como um visual que, embora não seja muito agradável aos olhos em uma primeira vista, faz sentido com a proposta apresentada pela película, integrando-os em cenas de batalha que remetem aos épicos fantásticos modernos.
A maior mudança aqui em relação ao Antigo Testamento está nos membros da família do próprio Noé, que se tornam a maior fraqueza e virtude redentora do protagonista simultaneamente. Pouco desenvolvidos nos textos originais, é através deles que alguns sentimentos básicos de humanidade são apresentados e trabalhados na fita, isso porque o protagonista-título e seu rival estão em jornadas próprias tão extremas que torna difícil a identificação do público médio com aquelas figuras.
Mas no sofrimento mundano de Cam (Logan Lerman), no amor entre Ila (Emma Watson) e Sem (Douglas Booth), na inocência de Jafé (Leo McHugh Carroll) e no carinho maternal de Namé (Jennifer Connelly) é possível ver o que há de mais humano e corriqueiro na fita, representando verdadeiros arquétipos para nossas necessidades e tentações modernas. Amor, carinho, desejo e proteção. Se Noé e Tubal-Caim representam o conflito das vertentes humanas em uma escala macro, os demais personagens são quem sofrem as consequências deste embate em um ambiente micro.
Connely, Lerman e Watson são os que possuem mais espaço para trabalhar os dilemas de seus personagens, com destaque para o jovem Lerman, cuja curiosidade para com os homens e a vontade crescente de encontrar uma companheira para si por vezes eclipsam seus deveres familiares. A dor da Namé de Connelly, que tenta manter a família unida em meio a uma inevitável tragédia, também desagua em um dos mais tocantes arcos da produção. Não se pode olvidar também o veterano Anthony Hopkins, em uma participação curta, mas divertida e essencial como o patriarca Matusalém.
A grandiosidade do espetáculo visual proporcionado pela fita, especialmente em seus dois primeiros atos, é compatível com a da tarefa de Noé. Aronofsky explora cada centímetro da tela, com a experiência em IMAX sendo altamente recomendada. No entanto, o 3D pós-convertido se mostra inútil e até comprometedor, transformando por vezes as belas criaturas digitais da ILM em figuras de papelão, sendo claro que o filme não foi pensado neste formato.
Por mais que tente martelar algumas mensagens de maneira forçada na cabeça da audiência, “Noé” funciona maravilhosamente quando se volta para seus personagens e deixa seu próprio discurso de lado. Assim como a bela trilha de Clint Mansell denuncia, o longa tem a ambição dos antigos épicos bíblicos de Cecil B. DeMille, mas com a urgência psicológica típica da filmografia de Aronofsky.