Embora se mostre mais movimentada que sua antecessora, esta segunda parte da trilogia apresenta ainda mais problemas narrativos, o que torna a experiência cinematográfica dependente de cenas de ação elaboradas e retira o foco dos personagens, denunciando a artificialidade da narrativa e atentando contra os valores do original literário.
Se o primeiro filme da trilogia “O Hobbit” era como pouca manteiga espalhada em um pedaço grande de pão, esta segunda parte, “A Desolação de Smaug”, lembra a mistura de pavê e carne assada que apareceu em um episódio da sitcom “Friends”. Individualmente, os elementos que compõem o longa, especialmente suas setpieces, são interessantes, mas juntos nesse pacote apresentado por Peter Jackson se mostram um prato gorduroso e difícil de engolir.
Neste capítulo do meio da trilogia, Bilbo (Martin Freeman), Gandalf (Ian McKellen) e a companhia liderada pelo candidato a rei Thorin Escudo de Carvalho (Richard Armitage) continuam sua jornada inesperada rumo a Erebor para enfrentarem o dragão Smaug (Benedict Cumberbatch) e recuperarem o reino e o tesouro dos anões. Logo, Gandalf parte para sua própria demanda paralela, buscando pistas sobre o retorno de um antigo mal na forma do Necromante (também Cumberbath), deixando seus pequenos amigos sozinhos.
Caçados pelos orcs encabeçados pelo monstruoso Azog (Manu Bennett), eles encontram no caminho com o troca-peles Beorn (Mikael Persbrandt), com os elfos da Floresta das Trevas liderados pelo arrogante e obtuso Thranduil (Lee Pace) e com os homens da cidade do lago de Esgaroth, governados pelo corrupto Mestre da Cidade (Stephen Fry), tendo a ajuda – ou não – do príncipe élfico Legolas (Orlando Bloom), de sua capitã da guarda Tauriel (Evangeline Lily) e do arqueiro humano Bard (Luke Evans).
Um dos erros de Jackson e de seus corroteiristas Fran Walsh, Phillipa Boyens e Guillermo Del Toro foi o de subestimar a inteligência de J.R.R. Tolkien. Ora, em seu âmago, a versão literária de “O Hobbit” é uma história infantil e que se assume como tal sem nenhuma reserva. Tolkien, em outros livros posteriores, apresentou um pano de fundo mais adulto para os eventos mostrados ali e essa separação não foi à toa.
Esses subplots mais complexos foram colocados em outras obras, como nos apêndices de “O Senhor dos Anéis”, “O Silmarillion” e “Contos Inacabados da Terra-média”, justamente por destoarem do tom leve da trama principal. Ao mixar tudo, o texto se torna um Frankenstein que perde sua coerência interna, indo de anões em barris a decapitações explícitas abundantes em menos de cinco minutos.
E o roteiro ganha ainda mais remendos com as alterações feitas no original, com acréscimos de personagens e de situações, que enchem ainda mais a proverbial linguiça e permitem a existência de uma trilogia que diminui a franquia e deixa a história com mais barriga e gordura que o rechonchudo anão Bombur (Stephen Hunter). Em sua auto indulgência, Jackson parece se recusar a cortar qualquer coisa do produto final.
Além disso, os atores se veem obrigados a repetirem várias vezes o tema do filme, transformando o subtexto de ganância colocado por Tolkien em texto, que é martelado várias vezes durante a projeção de quase três horas, principalmente nas cenas de Esgaroth. Durante a narrativa, Jackson ainda tenta encaixar diversas referências à Trilogia do Anel. Algumas funcionam, como o retrato de Gimli. Outras, como o uso de Athelas contra o envenenamento sofrido por um dos heróis, são arrastadas e demoradas demais.
Nisso, a produção se vê basicamente desprovida de ritmo, dependendo de elaboradas setpieces para manter o público interessado no que acontece na tela, justamente porque, à exceção de Bilbo e Gandalf, se torna quase impossível se importar com aquela multidão crescente de personagens sem muita personalidade.
Mesmo aquelas figuras que são mais exploradas pelo longa, como Thorin, Kili (Aiden Turner), Legolas e Tauriel, acabam participando de arcos pouco efetivos. Thorin jamais ganha a simpatia do público durante o filme, sempre aborrecido e, por vezes, excessivamente irritadiço e nada nobre, ao contrário do carismático Aragorn de Viggo Mortensen em “O Senhor dos Anéis”.
Já os outros três participam do triângulo amoroso mais insípido e estranho da história da Terra-média. Afinal, aparentemente é impossível para a indústria cinematográfica de Hollywood dos dias de hoje criar personagens femininas sem colocá-las entre dois interesses amorosos masculinos.
Essa lista extensa de problemas não significa que “O Hobbit – A Desolação de Smaug” não tenha suas qualidades. Toda vez que Martin Freeman e Ian McKellen surgem em cena, a tela parece brilhar com o carisma dos dois atores e de seus personagens. Pena que os dois tenham uma participação reduzida aqui. Freeman, especialmente, se sai muito bem no longo diálogo entre Bilbo e Smaug, com seu nervoso senso de humor trazendo humanidade a uma sequência banhada em computação gráfica.
O dragão, aliás, é deveras impressionante, com a voz profunda de Benedict Cumberbatch caindo como uma luva para a avarenta fera. Os valores de produção são esplendorosos, com a direção de arte diferenciando muito bem as culturas de homens, anões e elfos por meio dos diferentes cenários da aventura, facilmente identificáveis e igualmente impressionantes. A própria fotografia do longa, envolta em tons azulados e dourados conflitantes, enriquece esses detalhes visuais.
Os efeitos especiais, com exceção de alguns dublês virtuais um tanto artificiais, também se mostram de primeiríssima linha, o que ajuda Jackson na criação de cenas de ação grandiosas. Algumas dessas, como a sequência nas forjas de Erebor, são exageradas demais, mas o diretor via de regra acerta a mão, especialmente na tensa sequência com as aranhas e na fantástica fuga de barris, em um combate empolgante envolvendo anões, elfos e orcs. O confronto entre Gandalf e o Necromante também impressiona, especialmente na composição visual do quadro que revela a verdadeira natureza do vilão.
O 3D funciona mais como adorno visual do que como ferramenta narrativa, e é dolorosamente mal-empregado em alguns momentos, como durante um diálogo entre Gandalf e Radagast (Sylvester McCoy) nos arredores de Dol Guldur, no qual este último, em segundo plano, é colocado fora de foco por motivos que só Peter Jackson entende.
Enquanto a trilogia “O Senhor dos Anéis” se apoiava em elementos humanos para se destacar dos demais blockbusters, chega a ser melancólico que a ganância dos produtores em esticar demasiadamente “O Hobbit” tenha, ao menos até agora, diminuído tanto essas qualidades das prequências, que sobrevivem mais por apuro técnico que por qualquer outro motivo. A fita se encerra em um anticlímax deveras frustrante e é triste constatar que o público voltará para a conclusão da história, mas no piloto automático e sem a empolgação de outrora.