Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Lovelace (2013): cinebiografia competente de uma figura polêmica

A história de Linda Lovelace é base para discussão sobre violência contra a mulher.

Lovelace PosterLançado em 1972, o filme pornô “Garganta Profunda” se tornou uma das maiores bilheterias da história do cinema. O impacto cultural causado pela fita foi tão grande que até mesmo o escândalo de corrupção de Watergate, que culminou com a renúncia do presidente Richard Nixon, foi apelidado assim. E o elemento mais marcante daquela obra era o “talento” especial de sua protagonista, Linda Lovelace. Agora, 40 anos depois, os diretores Rob Epstein e Jeffrey Friedman comandam a cinebiografia da atriz, a partir do roteiro de Andy Bellin.

O filme tem início com uma mistura de cenas reais, de telejornais e programas de entrevista debatendo “Garganta Profunda”. Paralelamente, em cenas da juventude de Linda (Amanda Seyfried) são ilustradas suas poucas amizades e a relação conflituosa que tinha com a mãe, Dorothy (Sharon Stone, irreconhecível), uma católica fervorosa.

Pouco depois, tem início seu conturbado relacionamento com Chuck (Peter Sarsgaard), que a ajudaria a perder a inibição sexual, mais efetivamente depois do casamento. Depois de se envolver com drogas e ficar endividado, Chuck começa a agenciar a esposa em produções pornográficas. Isso a leva a conhecer os produtores Gerry Damiano (Hank Azaria), Butchie Peraino (Bobby Cannavale) e Anthony Romano (Chris Noth).

A partir daí, o longa mostra toda a ascensão meteórica de Linda, que assume o nome artístico Lovelace. É interessante o desenvolvimento da personagem, que sempre mantém uma aura de ingenuidade, com um deslumbramento pueril a cada evento que participa. Chega a ser tocante a sua reação quando um dos produtores fala “Nós vamos ganhar o Oscar”.

O roteiro tem sua estrutura desconstruída no momento em que Linda resolve deixar aquela vida. Nesse ponto, o tom se torna mais sombrio, pois começa a explorar o lado menos glamoroso daquela vida. As violências a que Linda era submetida são chocantes, além das constantes agressões físicas e psicológicas. Seu marido chega ao absurdo de oferecer a esposa para os amigos em troca de dinheiro.

E aqui surge o ponto mais importante da trama: uma crítica feroz a maior violência a que milhares de mulheres eram e ainda são submetidas até hoje, o acobertamento de uma sociedade machista. A história também segue um interessante exercício de metalinguagem, com a mudança do ponto de vista que a narrativa é contada a partir do momento em que Linda começa a escrever sua autobiografia. A recriação de época é bastante fiel, tanto nos figurinos e penteados dos atores, quanto nos objetos de cena, como carros, TVs e telefones. A fotografia, com uma granulação e cores que remetem àquela época, reforça essa atmosfera.

No campo das atuações, a obra é bastante regular. O trio de produtores tem um trabalho convincente, com destaque para a sequência em que Anthony Romano pune Chuck. As reações de Bobby Cannavale e Hank Azaria ao verem, pela primeira vez, a performance de Linda são impagáveis. Peter Sarsgaard incorpora Chuck de forma competente. Ele consegue ir de um homem simpático e extrovertido a um troglodita violento em segundos. Em contrapartida, James Franco está habitualmente canastrão, em sua pequena participação como o fundador da revista Playboy, Hugh Hefner.

Sharon Stone exibe grande talento, sob quilos de maquiagem, para interpretar a mãe da protagonista. Sua frieza ao mandar a filha recém espancada de volta a casa de seu marido (“Onde já se viu uma mulher casada dormir longe de seu marido?”) é assustadora. Robert Patrick, que interpreta o pai de Linda, mantém o nível das interpretações. A sua sequência de redenção, em uma conversa por telefone com a filha, é comovente.

Já Amanda Seyfried merece todos os elogios. Ela consegue manter a aura juvenil, quase infantil de Linda, mesmo durante as gravações de seus filmes. A sua fragilidade diante de tantas situações lamentáveis pelas quais passou é emocionante. E a sua postura física, bem mais relaxada em uma vida normal, coroam uma atuação irretocável.

Ainda que vez ou outra soe episódico, “Lovelace” é uma obra acima da média, com boas atuações e um roteiro bem desenvolvido. E além de contar uma história polêmica, sabe utilizar essa experiência para levantar discussões importantes sobre temas que já não deveriam fazer parte de uma sociedade minimamente civilizada.

David Arrais
@davidarrais

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