Não se envergonhando de ser um blockbuster, mas também apresentando uma proposta politizada atípica, esta segunda e deveras competente parte da saga "Jogos Vorazes" tem tudo para conquistar públicos completamente distintos e tornar Jennifer Lawrence uma estrela ainda maior.
Em 1977, George Lucas lançou nos cinemas “Guerra nas Estrelas” (sim, sou velho), produção relativamente pequena onde um grupo de rebeldes consegue uma pequena vitória em sua luta contra um império opressor. O filme termina em uma nota positiva, como se aquela batalha tivesse assegurado a vitória dos heróis. Três anos depois, a história continuou em “O Império Contra-Ataca”, fita bem sombria onde os mocinhos passam por uma verdadeira via crucis e descobrimos que o mal estava longe de perecer.
É interessante que a autora literária Suzanne Collins – e, posteriormente, a equipe responsável pelo primeiro filme – tenha se utilizado do mesmo expediente que Lucas (e Tolkien, Pullman e outros autores de SAGAS). Caso o primeiro “Jogos Vorazes” tivesse fracassado, a história de Katniss (Jennifer Lawrence) e Peeta (Josh Hutcherson) teria um final relativamente satisfatório, embora incompleto.
Com o sucesso alcançado pela franquia nos cinemas, foi dada carta branca para este “Jogos Vorazes: Em Chamas” explorar o universo distópico de Panem de modo mais profundo e elevar os castigos e desafios impostos aos heróis em vários níveis, em uma experiência cinematográfica mais pesada e corajosa, justamente por seu cunho politizado, algo raríssimo entre blockbusters voltados para o público juvenil.
Após a vitória na 74ª edição dos Jogos Vorazes, Katniss e Peeta começam sua turnê como vitoriosos pelos 12 paupérrimos distritos de Panem, como provas vivas da opulência e “generosidade” da Capital. No entanto, os “amantes desafortunados”, especialmente Katniss e seu tordo, se tornam símbolos de resistência contra os abastados opressores, o que coloca todos os vencedores dos Jogos Vorazes anteriores na alça de mira do Presidente Snow (Donald Sutherland).
Então, para a edição comemorativa de 75 anos dos jogos, agora organizados pelo misterioso Plutarch Heavensbee (Phillip Seymour-Hoffman), é decidido que vencedores de todos os distritos se enfrentarão na arena, independente de suas idades, em um evento criado especificamente para que Snow se livre de Katniss e de sua influência sobre o povo, levando a garota e Peeta de volta ao combate, desta vez enfrentando assassinos experientes e com riscos ainda maiores em jogo.
Elementos que podiam tirar o foco dos jogos e dos conflitos psicológicos dos personagens – como setpieces gigantescas e vazias ou mesmo o insípido triângulo amoroso Katniss-Peeta-Gale (Liam Hemsworth) – são driblados pelo ótimo roteiro de Simon Beaufoy (“Quem Quer Ser um Milionário?”) e Michael Arndt (“Toy Story 3” e, curiosamente, do vindouro “Star Wars VII”).
Destarte, os combates só começam com quase uma hora e meia de filme já transcorrida e os próprios personagens reconhecem que preocupar-se com romance em uma situação daquelas seria algo ridículo – o que ainda acrescenta mais um elemento de tragédia à situação dos jovens, que não deveriam carregar em seus ombros uma carga tão pesada.
De fato, quando reencontramos Katniss e Peeta, ambos estão sofrendo de Síndrome de Estresse Pós-Traumático e, por meio dessa condição dos dois, nós passamos a entender mais do sofrimento de Haymitch (Woody Harrelson). Aliás, o próprio tom cínico com o qual o diretor Francis Lawrence (“Constantine”) conduz a narrativa lembra muito o estado de espírito do mentor no longa original.
A “turnê” e o contraste das situações vividas pelos distritos e pela Capital são massacrantes para todos. Aos poucos, até mesmo a alienada Effie (Elizabeth Banks) começa a entender quão devastador o status quo daquele mundo é – salvo para a elite que vive na Capital, distante do sofrimento da maioria, cujas provações sustentam os seus luxos.
O filme não funcionaria não fosse o talento e carisma de Jennifer Lawrence, que tem uma responsabilidade ímpar aqui. É o sofrimento de sua Katniss que é colocado para o público em todos os momentos e são as cicatrizes emocionais dela que são expostas de formas que beiram o sadismo, até sua resolução final, no qual um poderoso olhar da jovem atriz nos fulmina de maneira direta e a mudança que ocorreu no interior de Katniss mostra-se palpável.
O foco em Lawrence não significa que os demais atores não estejam bem, longe disso. Hutcherson está ótimo no papel do mais pragmático Peeta e Harrelson novamente rouba cena a cada vez que aparece, enquanto Jena Malone, Lynn Cohen, Amanda Plummer e Jeffrey Wright imprimem personalidades distintas aos seus Vitoriosos/Tributos, permitindo um vislumbre dos efeitos dos jogos em uma miríade de personagens diferentes.
E é chover no molhado elogiar Phillip Seymour Hoffman, aqui em uma discreta, mas marcante participação, em ótimas cenas ao lado de Donald Sutherland, que exala arrogância e poder. O único ponto fraco no elenco principal é mesmo Lenny Kravitz, que não se encontrou como Cinna e acaba destoando do restante do cast toda vez que entra em cena.
Francis Lawrence merece ser louvado pela sobriedade e seriedade com a qual conduz a trama, não se deixando abalar pelos exageros visuais da capital, no que poderia ter virado um espetáculo carnavalesco sem sentido, digno do espetáculo de pão e circo denunciado pela franquia. Todos os elementos da produção convergem de maneira certeira não para criar um deleite sem sentido, mas uma obra que, mesmo voltada para o entretenimento, não esquece ter um significado maior. Será um longo ano até o próximo capítulo.