Hilton Lacerda constrói uma trama irresistível sobre amor, política, irreverência e liberdade.
Uma história de amor entre um jovem soldado e um artista excêntrico em tempos de intolerância da ditadura no Brasil. Mais precisamente, um romance que acontece em 1978, mas que nem por isso deixa de ser atual. Vencedor dos festivais do Rio e de Gramado, e integrante da mostra competitiva do Amazonas Film Festival desse ano, de onde absurdamente saiu sem prêmios, “Tatuagem” chamou atenção por onde passou. O cineasta Hilton Lacerda narra uma história política e sexual que provoca, com a irreverência do já consolidado cinema pernambucano.
O teatro Chão de Estrelas é um cabaré meio Moulin Rouge meio Dzi Croquettes, inspirado no coletivo Vivencial Diversiones, que atuou no Recife dos anos 70. Lá, Clécio, interpretado por Irandhir Santos, cria um novo espetáculo ao lado de Paulete, papel de Rodrigo Garcia, a grande estrela da trupe. Eles vivem a liberdade sexual que ainda incomoda – ou nunca deixou de incomodar – e reúne em guetos os seus semelhantes, provocando a moral e os bons costumes da periferia. Ao lado de artistas e intelectuais simpatizantes, eles montam uma peça musical onde o que vale é o deboche político.
De outro lado, Arlindo Araújo, mais conhecido como Fininha, é um jovem de 18 anos que presta serviço militar. Ao conhecer Fininha, papel de Jesuíta Barbosa, Clécio não controla seu desejo e inicia um romance com o garoto, que passa a frequentar o cabaré e o coletivo. A descoberta sexual é apenas uma das motivações do enredo, que dialoga também com o poder político da época e com as bases da família desregulada. Clécio é pai de um garoto de 13 anos e mantém contato fraterno com sua esposa, enquanto Fininha namora uma garota e aceita o quartel em nome da família.
Ainda que ambiente o longa em 1978, o diretor Hilton Lacerda afirma que não teve a intenção inicial de gerar saudosismo de uma época delicada da história do Brasil. A censura, por exemplo, é abordada de forma sutil, ao contrário da exposição do corpo e do sexismo daqueles indivíduos. Assim, a plateia se importa muito mais com esses típicos underdogs em busca de um lugar no mundo do que com o contexto histórico em si. Os conflitos e a transgressão dos personagens preenchem a tela, seja durante os longos ensaios da peça anárquica ou em suas vidas particulares.
Para o bom resultado do longa, Lacerda conta com um elenco afiado encabeçado por Irandhir Santos, um dos nomes mais disputados do cinema independente atual. Eclético, o ator constrói várias facetas para Clécio, além de ter ótima química com o jovem Jesuíta Barbosa. Este, por sinal, também se destaca pelo magnetismo em cena e por falar apenas lançando um simples olhar, tarefa árdua para qualquer ator experiente. Rodrigo Garcia constrói Paulette de forma tão particular que os estereótipos são ignorados em prol do desenvolvimento humano do personagem. Vale destacar também a atriz cearense Georgina Castro na pele da irmã de Fininha, em uma participação especial rápida e densa.
Lacerda, frequente colaborador de outros cineastas pernambucanos, como Claudio Assis (ele roteirizou “Amarelo Manga” e “Febre do Rato”, para citar alguns), assume com firmeza a direção de sua primeira ficção. A obra se passa em Pernambuco, mas ganha universalidade pelos olhos do diretor, que sabe trabalhar a história excêntrica que criou, sabe o que exigir de seu elenco e conhece a linguagem cinematográfica. Ainda assim, parece que o filme se torna longo demais, talvez pelos enormes números de encenação do Chão de Estrelas. Ou por provocar demais o espectador que não está acostumado com filmes tão fora do esperado.
Não é de hoje que o cinema pernambucano desponta como um dos mais agressivos, no bom sentido da palavra, do circuito nacional. Realizadores como Marcelo Gomes, Daniel Aragão, Lírio Ferreira, Heitor Dhalia, Kleber Mendonça Filho, Claudio Assis, Renata Pinheiro, Guel Arraes, entre tantos outros, marcam a filmografia da região. Agora, Hilton Lacerda contribui com mais um bom exemplar do cinema independente com “Tatuagem”, que certamente vai agradar quem busca identidade e ousadia na filmografia brasileira.
Esse filme fez parte da programação do 10º Amazonas Film Festival, em novembro de 2013, e a crítica foi adaptada de matéria especial publicada por este autor no Jornal Diário do Nordeste.