Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Serra Pelada (2013): ouro e violência no interior do Brasil

Superprodução nacional impressiona pela dimensão e qualidade.

Serra PeladaNos anos 80, o Brasil viveu um fenômeno parecido com o que houve no Alasca, nos Estados Unidos, no final do século XIX: a Corrida do Ouro.  Milhares de pessoas de diversas regiões abandonaram família e trabalho em busca do sonho de fazer fortuna garimpando ouro no interior do Pará. Diante disso, Heitor Dhalia escreveu (junto com Vera Egito) e dirigiu “Serra Pelada”, que conta a jornada de dois amigos rumo ao “eldorado brasileiro”.

Joaquim (Júlio Andrade), o Professor, e Juliano (Juliano Cazarré), o Grandão, são se conheceram no caminho até o Pará. Depois de criarem um forte laço de amizade e montarem sociedade na exploração do garimpo, começam a ter divergências, algumas causadas pelas ofertas de Lindo Rico (Wágner Moura) ou o Coronel Carvalho (Matheus Nachtergaele), outro empresário da região.

A diferença de objetivos dos dois fica clara depois que começam a ter sucesso com a extração do ouro. Joaquim se dedica a economizar e sempre enviar parte de seus ganhos para a esposa, e evita participar das “comemorações” nas cidades vizinhas. Enquanto isso, Juliano não parece se preocupar com o futuro, e gasta toda a sua parte com mulheres e bebidas. Isso o leva a se envolver com Tereza (Sophie Charlotte), que é amante do Coronel Carvalho.

Em uma narração em off,  Joaquim explica vários dos termos utilizados naquela região, como “homem-formiga”, “bamburrar”, “dama” e “sócio”. E também ilustra o dia a dia daquela sociedade: o comportamento dos garimpeiros depois de conseguirem um bom montante de dinheiro pelo seu trabalho, a participação de homossexuais naquela sociedade, como o governo lidava com o comércio do ouro extraído e as condições precárias de segurança de trabalho e de saúde nos barrancos. Outro ponto forte do roteiro, que não tem o menor pudor em abusar de palavrões, são seus diálogos como “Esse lugar piora a gente” ou quando o Coronel Carvalho dá um “conselho” a um garimpeiro que se apaixona por uma prostituta.

O ator Júlio Andrade repete o sucesso de seu trabalho em “Gonzaga – De Pai para Filho”. A paixão e a dedicação com que o Professor se lança ao trabalho são extremamente convincentes. Os momentos de desespero e saudade da família têm o mesmo peso, como na sequência em que passa da felicidade ao desespero com o destino de seu faturamento. Juliano Cazarro é igualmente competente. “Grandão” é um homem forte, que sabe usar seu porte físico avantajado para conseguir o que quer, seja salvar o amigo em uma briga violenta ou conseguir uma mulher em um bar. Sophie Charlotte também tem uma atuação marcante. É incrível como ela consegue equilibrar em uma mesma cena o desejo que sente por Juliano e seu lado racional que manda ficar com Carvalho.

Wágner Moura está absolutamente confortável como Lindo Rico, um experiente investidor da região. A naturalidade dos rompantes de violência de seu personagem é tão assustadora quanto a frieza com que ele mata quem incomoda. E também é de se exaltar que um ator de seu porte não se incomode em ter uma participação pequena em uma obra dessa escala. Matheus Nachtergaele tem uma performance contida, mas não menos vigorosa. O fato de nunca deixar transparecer o que se passa na cabeça do Coronel o torna ainda mais ameaçador.

A direção de arte realiza um trabalho brilhante. A recriação de época é detalhada, com modelos de carros, figurino e demais elementos cênicos fiéis ao período. O uso de imagens de revistas, jornais e programas de televisão da época reforçam esse realismo. O que mais chama atenção na fita é a ambientação dos garimpos. A evolução das escavações, a sujeira que fica impregnada nos trabalhadores, a poeira resultante do trabalho. Tudo isso reflete a dedicação dos artistas envolvidos.

A fotografia aposta em uma paleta de cores quentes, principalmente laranja, amarelo e dourado. A cena em que Joaquim sofre um delírio e se vê coberto de dourado é belíssima. A direção de Dhalia é firme e conduz a narrativa de maneira eficaz, sem perder o ritmo.  E alguns enquadramentos deselegantes e cortes bruscos são compensados com planos inspirados, como o momento que Joaquim recebe notícias de sua família distante.

Com “Serra Pelada”, Heitor Dhalia executa um excelente trabalho, que merece toda a repercussão positiva que tem recebido. Ela ainda atinge o objetivo de criar uma superprodução de gênero, algo raro no cinema nacional.

David Arrais
@davidarrais

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