Contando com um roteiro maravilhoso, ótimas atuações e uma fotografia primorosa, o cineasta cearense Rosemberg Cariry trilha o caminho entre o humor e a tragédia para contar do amor de uma trupe circense mambembe pela arte que os sustenta.
Não é algo fácil produzir arte. Menos de um por cento dos artistas do mundo vive no glamouroso mundo de riqueza e das revistas de fofocas que o público tanto admira. A maioria luta todos os dias para ganhar a vida por meio desse ofício, que mais se aproxima de uma vocação. Aqueles que vivem da arte o fazem por serem compelidos a isso.
Em “Os Pobres Diabos”, longa-metragem escrito e dirigido pelo cineasta cearense Rosemberg Cariry, temos o retrato dos sacrifícios feitos por um grupo de artistas circenses, pertencentes a uma companhia mambembe que viaja pelo nordeste brasileiro para executar seus números e sobreviver dignamente, algo sempre difícil.
Em meio às lutas do mestre do picadeiro Arnaldo (Everaldo Pontes) para manter as lonas do Gran Circo Teatro Americano em pé e os empregados alimentados, vemos as angústias pessoais do cotidiano desses intérpretes viajantes, com destaque para o triângulo amoroso formado pela sedutora dançarina Creusa (Silvia Buarque), seu companheiro Zeferino (Gero Camilo) e o palhaço Lazarino (Chico Diaz). Essa desventura amorosa se desenvolve de maneira metalinguística, por meio de números no palco e na “vida real”, com desempenhos fenomenais dos três atores, que exibem uma química formidável quando atuam juntos em cena.
Enquanto Silvia Buarque explora as frustrações de Creusa para com a sua vida “miserável”, Gero Camilo comove com o amor e carinho quase que tangíveis que Zeferino sente para com Creusa e a filha da amada, a quem ele trata como sua. Mas é Lazarino, o personagem mais caótico da trupe, que rouba o show. Suas ações são guiadas apenas pelos desejos que o perseguem, com as consequências de seus atos tratadas de maneira leviana.
Essa figura cheia de nuances, cujos únicos sentimentos reais são para com o ofício e uma galinha, é um prato cheio para um ator como Chico Diaz, que o dota de uma energia ímpar, tornando-o um palhaço quintessencial, felliniano, um ser enganador e lascivo, mas com uma tristeza escondida e dotado de alguma ternura.
A despeito do humor que é costurado na tessitura do roteiro, há um clima de tragédia que permeia a fita desde seu início. Além disso, o plano que retrata o grupo em uma pose que remete diretamente à Última Ceia não nos engana quanto ao desfecho que a história terá.
A bela fotografia do longa, responsabilidade de Petrus Cariry, retrata quão minúsculos são aqueles personagens frente ao inóspito ambiente no qual insistem em batalhar, traduzindo visualmente a valentia dessas figuras ao persistirem unidos em suas labutas diárias.
Ainda louvem-se os figurinos e a direção de arte, que retratam de maneira fiel o estilo de vida itinerante e repleto de improvisos daquela gente batalhadora. O apuro visual da produção transforma o próprio circo um personagem da trama per si, o que torna ainda mais desesperadora a luta de Arnaldo para manter o maior espetáculo da Terra vivo e fortalece ainda mais o belo trabalho de interpretação de Everaldo Pontes.
Se na parte visual o filme é quase que irretocável, alguns problemas de som, especialmente na ADR (Automated Dialog Replacement), acabam por atrapalhar um pouco a experiência. A dublagem de algumas cenas, obrigatória em filmagens onde o som direto acaba comprometido – algo comum em externas em ambientes complicados como os da fita -, se torna demasiadamente óbvia, o que revela problemas de mixagem sonora.
Mas é algo mínimo frente ao impacto desta poderosa obra, uma complexa jornada emocional que leva o espectador a compreender um pouco do que motiva esses pobres diabos chamados artistas a continuarem a travar o bom combate, mesmo quando o mundo inteiro parece contra eles.
Esse filme fez parte da programação do 23º Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema, em setembro de 2013.