Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Flores Raras (2013): Bruno Barreto filma romance lésbico com delicadeza

Sem levantar bandeiras e muito menos polemizar, diretor brasileiro mescla português e inglês em seu belo retrato da longa passagem da poetisa norte-americana Elizabeth Bishop pelo País.

Flores RarasUm dos primeiros diretores brasileiros a arriscar-se no mercado internacional, Bruno Barreto ainda parece querer atingir públicos mais vastos com seus trabalhos. Depois de resultados medianos no fim dos anos 90 e um enorme fracasso em 2003, com  “Voando Alto”, ele volta a lançar um longa quase inteiramente falado em inglês. Mas “Flores Raras” ainda tem muito de Brasil, mais especificamente do Rio de Janeiro dos anos 50 e 60. É lá na capital fluminense e em um belo refúgio no interior do Estado que Barreto conta uma delicada história de amor, que por acaso vem a ser entre duas mulheres.

Mas não estamos falando de quaisquer mulheres. Tratam-se da premiadíssima poetisa norte-americana Elizabeth Bishop (Miranda Otto) e da famosa arquiteta brasileira Lota de Macedo Soáres (Glória Pires). É a tentativa por espairecer e buscar inspirações que traz Bishop ao País. Recebida pela antiga amiga de universidade Mary (Tracy Middendorf), que mantém um longo relacionamento afetivo com Lota, inicialmente ela não provoca as melhores das reações na arquiteta. Mas o tempo faz as duas se aproximarem e se apaixonarem. Um romance conturbado, então, começa, se estendendo por anos, entre beijos e discussões, como qualquer outro casamento.

E é esse o maior triunfo do novo filme de Bruno Barreto: não polemizar, não levantar bandeiras, entender o amor apenas como um sentimento, que não se importa com credo, cor e sexo. Para tanto é preciso levá-lo para regiões afastadas das cidades, como a bonita Samambaia, refúgio de Lota, ou para o interior de apartamentos no Rio de Janeiro. Dessa forma, o roteiro de Matthew Chapman e Julie Sayres, baseado no livro “Flores Raras e Banalíssimas”, de Carmen L. Oliveira, foge de assuntos batidos como inclusão social e pode concentrar-se em suas ricas personagens.

O desenvolvimento da personalidade de Elizabeth Bishop, em especial, é magnífico. Desde a primeira cena, a trama demonstra sua profundidade, seus embates internos, suas dúvidas e insegurança. E eles só se multiplicam com o tempo. É difícil defini-la, saber como irá se comportar. Seus traumas de infância vêm à tona com parcimônia, mas ajudam a explicar um pouco de sua maneira de agir, às vezes insensível, às vezes apaixonada.  O grande trunfo do roteiro é exibir seu amadurecimento, a perda relativa da timidez, quando passa a se sentir mais à vontade, permitindo-a até ser dominante em cena de sexo ou perder-se no alcoolismo.

Já Lota de Macedo traz a força de uma brasileira decidida que, como mesmo diz, já nasceu arquiteta. Ela é definitivamente uma mulher à frente de seu tempo, que despreza qualquer tipo de convenção. Se o seu romance com Elizabeth parece inapropriado para o público em um primeiro momento (e o envolvimento soa realmente apressado), o amor entre elas é verdadeiro, resultando em bonitas sequências recheadas de diálogos bem trabalhados, dignos da formação profissional das duas. O mesmo não se pode dizer da decadência mental de Lota, já no ato final do filme. Não há brechas de fragilidade suficientes em sua personalidade que permitam tal queda.

No entanto, a relação das atrizes com a câmera de Barreto compensa os erros da narrativa. Apostando no trabalho do elenco, o diretor aproxima a lente do rosto de suas mulheres (já que seu elenco é quase inteiramente feminino) e as captura quase nuas, em sua exalante sensibilidade. Miranda Otto domina completamente a tela, convencendo inteiramente o público de sua verdade, seja como poetisa, seja como mulher apaixonada. É ela quem torna tudo tão delicado, até mesmo a Lota de Glória Pires. A atriz brasileira, por sinal, está bastante à vontade com a mescla de língua inglesa e portuguesa e ainda adiciona um surpreendente gestual masculino, mas sem jamais perder a feminilidade.

Tracy Middendorf, como a traída Mary, e Marcelo Airoldi, como Carlos Larceda, político e amigo de Lota, complementam o elenco com rara competência. O último personagem, aliás, faz com que o filme também sirva como referência histórica, seja por meio da demonstração da construção do Aterro do Flamengo (idealizado por Lota), seja na tomada do governo pelos militares em 1964. Aqui “Flores Raras” comete falhas mais graves, especialmente ao inocentar políticos e idealizar um Brasil pacífico demais, bonito demais. Mas tudo não passa de um breve sujeira em uma obra límpida, surpreendente, que pode e deve se tornar referência na longa carreira de Bruno Barreto.

Darlano Didimo
@rapadura

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