Em uma aposta ousada, Guillermo Del Toro presta homenagem a um gênero de nicho e entrega não só uma ficção científica de ação extremamente competente, mas um dos longas mais divertidos do ano.
Guillermo Del Toro tem o poder de enfurecer os seres, transformando-os em monstros incontroláveis. Se você entendeu essa referência, faz parte do público-alvo deste “Círculo de Fogo”, novo filme do cineasta mexicano que, mesmo não sendo oscarizável como “O Labirinto do Fauno”, é provavelmente sua obra mais divertida até aqui.
Desde o seu primeiro frame, Del Toro já deixa claro suas intenções: entreter através de homenagens a um gênero extremamente underground, que é o tokusatsu (“efeitos especiais” em japonês). Para o público brasileiro, acostumado há três gerações com robôs e monstros gigantes se digladiando em cidades nipônicas inocentes, isso vai acrescentar uma dosa a mais de nostalgia a uma viagem descompromissada.
O roteiro, escrito pelo próprio diretor em parceria com Travis Beacham (“Fúria de Titãs”) preza por sua simplicidade: Após anos em guerra com os bestiais kaijus, alienígenas imensos que invadem nosso mundo por uma fenda no fundo do oceano pacífico, a humanidade começa a desistir de lutar. Então, o valente marechal Stacker Pentecost (Idris Elba) reúne os últimos jaegers (robôs de combate) ainda disponíveis e seus respectivos pilotos para uma derradeira investida contra os inimigos extraterrenos.
Dentre estes pilotos estão os protagonistas da fita, o rebelde Raleigh (Charlie Hunnam) e a talentosa e traumatizada Mako (Rinko Kikuchi), que comandam um jaeger antigo, que era pilotado por Raleigh e seu falecido irmão. Ambos perderam muito durante os conflitos contra os monstros e se conhecem em um momento de virada em suas vidas. Eles são hostilizados por um piloto metido e cheio de atitude com o qual desenvolvem uma rivalidade e ajudados por cientistas loucos (Burn Gorman e Charlie Day) que se admiram no mesmo nível em que discutem entre si.
Bom, deu para notar que Del Toro e Beacham buscaram cada clichê do gênero e os destilaram em uma só história. Mas o cineasta conseguiu fazer com que esses chavões funcionem de modo orgânico dentro do texto. Isso porque o próprio filme avança sem se levar muito a sério, reconhecendo o absurdo da sua premissa, mas jamais caindo para o lado do humor raso ou mesmo para a paródia.
Esse complicado feito só pôde ser alcançado graças ao respeito que o diretor tem pelos clássicos que o influenciaram, passando pelo “Godzilla” original de Ishiro Honda, a franquia “Ultraman” criada por Eiji Tsuburaya, a animação oitentista “Macross”, obras mais recentes como a série “Neon Genesis Evangelion” de Hideaki Anno e até mesmo sci-fi mais conhecidas como a britânica “Doctor Who”. Tais obras são referenciadas visual e textualmente, mas sem nenhum fanservice descontrolado, o que poderia alienar boa parte da audiência.
Aqueles nunca ouviram falar no Gigante Guerreiro Daileon e que não sabem que Godzilla é a contração das palavras japonesas para baleia e gorila podem ir sossegados ao cinema, não sendo necessário prévio conhecimento de nenhuma outra obra para embarcar no espírito do longa, até porque este conta uma história deveras autocontida e concisa em um ritmo forte, alternando um rápido desenvolvimento de seus personagens e batalhas de tirar o fôlego.
Considerando a pouca exigência dramática do projeto, Charlie Hunnam e Rinko Kikuchi seguram os postos de co-protagonistas e interagem bem em cena, algo primordial para o funcionamento da película, dado o relacionamento entre Raleigh e Mako é um dos pilares do texto, até porque os espectadores precisam se importar com o destino deles para que as cenas de ação funcionem.
Hunnam tem o ingrato cargo de ser aquele tipo de herói que passa o primeiro ato da fita hesitando em aceitar sua missão, mas o ator lida bem com esse momento. Já Kikuchi exibe com competência o lado mais fragilizado de Mako, embora quase seja eclipsada pela atriz mirim Mana Ashida, impressionante em sua curta participação como a versão mais jovem da personagem.
O grande destaque do elenco é realmente Idris Elba, que empresta sua forte presença e virilidade ao Marechal Pentecost com maestria, dominando a cena em todas as suas aparições. Burn Gorman e Charlie Day funcionam muito bem como os alívios cômicos da fita, exacerbando na medida certa os trejeitos das figuras de cientistas loucos que encarnam. Day ainda divide a cena com um excêntrico Ron Pearlman, cujo Hannibal Chau se mostra uma das figuras mais marcantes do longa, mesmo com o colecionador peculiar de kaijus aparecendo apenas rapidamente.
Aliás, as titânicas criaturas, criadas através de efeitos digitais, são impressionantes, dotadas de visuais estranhos, mas ao mesmo tempo funcionais, com iluminações internas bizarras que combinam com criaturas marinhas vindas do fundo do oceano. Já os robôs, longe de serem máquinas perfeitas recém-saídas dos estaleiros, possuem designs que remetem a veículos de suas respectivas culturas, inspirados em várias eras da militaria. O americano Gipsy Danger dos protagonistas tem marcações estadunidenses da Segunda Guerra Mundial, o gigante russo lembra um submarino soviético da Guerra Fria e assim por diante.
Embalados pela empolgante trilha de Ramin Djawandi (com colaboração do guitarrista Tom Morello), os combates entre os gigantes são o prato principal e Del Toro fez questão de mostrar como esses humanoides de 2500 toneladas são pesados, com o impacto dos movimentos dos combatentes sendo sentidos na tela, bem como a destruição resultante destes.
É incrível que, mesmo com o escurecimento dos óculos 3D e com a maioria das lutas acontecendo à noite, os embates consigam ser tão fáceis de acompanhar, passando longe da bagunça tresloucada da trilogia “Transformers”, isso graças aos espetaculares efeitos especiais, que funcionam em harmonia com a bela fotografia de Guillermo Navarro.
Feito com paixão e competência, “Circulo de Fogo” é certamente um dos blockbusters mais corajosos deste ano, resultado da aposta de seu realizador em uma produção que poderia ser considerada de nicho. Mas a coragem favorece aos ousados, e o resultado é um dos longas mais divertidos do ano até aqui.
P.s.: Há uma breve cena durante os créditos finais.