Em seu primeiro trabalho em língua inglesa, o diretor sul-coreano responsável por "Oldboy" dá a sua perturbadora versão para o desabrochar de uma jovem, enquanto esta descobre sua verdadeira natureza.
Os cinéfilos geralmente ficam preocupados quando cineastas de outras partes do mundo começam a trabalhar nos EUA. Isso porque suas marcas autorais tendem a desaparecer sob a sombra do letreiro de Hollywood, vide o caso de Oliver Hirschbiegel. Apesar desse histórico preocupante, os fãs do sul-coreano Chan-wook Park podem ficar tranquilos, pois este “Segredos de Sangue” faz jus à filmografia do diretor de “Oldboy”.
Escrito por Wentoworth Miller (sim, o Michael Scofield da série de de TV “Prison Break”), em colaboração com Erin Cressida Wilson (“Secretária”), o longa narra a perturbadora jornada de autodescoberta de India Stoker (Mia Wasikowska), jovem que perde seu pai (Dermot Mulroney) no dia do seu aniversário de 18 anos em um estranho acidente.
Deixada com sua instável mãe, Evelyn (Nicole Kidman), ela então conhece seu tio Charlie (Matthew Goode), charmoso irmão de seu pai, e um parente do qual jamais tinha ouvido falar. Aos poucos, este homem aparentemente comum acaba trazendo à tona um lado de India que ela mal conhecia.
A evolução da protagonista está ligada de maneira íntima ao seu relacionamento com os demais personagens. Com o pai, há uma ligação fortíssima, estreitada pelas caçadas nas quais a garota abatia pacientemente diversos animais, sendo a morte o elo mais forte a uni-los, com o progenitor mostrando que sempre entendeu aquilo que jazia dormente no coração da filha.
Já entre a menina e a mãe, há um distanciamento que poderia muito bem ser medido em anos-luz, pois Evelyn anseia por uma “normalidade” que jamais chegará, se mostrando frustrada pelas experiências que não viveu, pela ausência de conexão com a filha e a frieza do marido, que só ligava para India.
Finalmente, a protagonista se vê refletida em Charlie, enxergando nele os mesmos anseios que existem dentro dela, vendo por trás da fachada daquele homem experiente e sedutor aquilo que ela pode se tornar no futuro.
Aos poucos, India se descobre, montando sua persona com pedaços de outros até se ver completa, adulta e livre. O grande mistério da fita é a real face desta criatura prestes a desabrochar. Graças à magnética performance de Mia Wasikowska, a verdadeira natureza da moça surge de absolutamente natural, com sua sinistra revelação jamais parecendo forçada ou caricata.
Isso porque a jovem atriz não usa a inquietação de sua personagem como uma muleta de interpretação, mas como a ferramenta certa para mostrar os conflitos psicológicos de um ser em plena metamorfose. Sem medo das cenas mais fortes, Wasikowska se joga de corpo e alma no papel, com destaque para o seu despertar sexual e para a conclusão de sua transformação, nos instantes finais da projeção.
Neste sentido, a química da moça com Matthew Goode é essencial para o sucesso da empreitada, havendo uma tensão palpável toda vez que os dois dividem a tela, presente mesmo nos momentos mais prosaicos. Goode nos apresenta a um perfeito cavalheiro e é pelos olhos de India que percebemos a estranheza nele. Qualquer toque ou reação de um ao outro são cuidadosamente examinados pela câmera de Park, que os coloca sob um pesado escrutínio. Ressalte-se também o revelador e pesado diálogo entre Goode e Dermot Mulroney, certamente um dos momentos mais marcantes da produção.
Nicole Kidman também está sensacional em cena, com a atriz assumindo mais um papel extremamente difícil. Sua Evelyn é uma mulher completamente acuada e sem amor, que vê uma segunda chance para sua vida sem sentido por meio de uma possível relação com uma versão rejuvenescida de seu falecido marido, acreditando piamente na imagem projetada por Charlie. Os ciúmes que Evelyn sente da relação entre India e o seu pai (e o reflexo deste na figura da Charlie) a levam a odiar a filha de um modo assustador, mesmo com ela sabendo conscientemente que deveria amar a garota.
O “sangue” citado no título nacional é um elemento central da narrativa e a movimentação pesada dos personagens quase que espelha isso, parecendo que estes caminham por entre invisíveis bolsões do espesso líquido. Os planos criados por Park e seu diretor de fotografia, Chung-hoon Chung, são elegantes e melancólicos, caracterizados por poucos e fluidos movimentos de câmera e cores mortas e tristes.
O ritmo cadenciado imposto por Park permite ao público desvendar os mistérios daquela família camada por camada, causando uma sensação angustiante mesmo, em cenas mais serenas. A “paciência” de India se reflete neste aspecto da produção. Assim como ela espera o ponto certo para acertar seus alvos, a trama progride de modo a acertar a audiência com revelações certeiras em momentos precisos.
Neste sentido, louve-se a montagem do longa, responsabilidade de Nicolas de Toth (“A Soma de Todos os Medos”), que trabalha com diversos flashbacks no decorrer da narrativa sem jamais torná-la confusa ou dispersa.
A fabulosa trilha sonora de Clint Mansell, colaborador habitual de Darren Aronofsky, reflete a triste inquietação que marca a jornada de India. Ressalte-se a colaboração do compositor Phillip Glass na trilha, em um marcante (e erótico) dueto de piano entre India e Charlie.
Poderoso e difícil, “Segredos de Sangue” é mais uma obra praticamente irrepreensível de Chan-wook Park sobre a violência inerente às pessoas, mostrando que o assustador talento do cineasta sul-coreano ultrapassa fronteiras e idiomas, graças à universalidade dos instintos humanos mais básicos. Recomendado.