Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 02 de junho de 2013

Faroeste Caboclo (2013): adaptação de música de Renato Russo é ousada

Assim como a canção, filme desrepeita padrões e traz um western trágico em plena capital federal.

Faroeste CabocloPara entender ou homenagear um artista, principalmente desses bem especiais como Renato Russo, uma cinebiografia pode não ser a melhor escolha. É tradicional demais para o padrão de convenções que eles, artistas, dificilmente respeitam. Talvez por isso (e também por outras tantas escolhas ruins) que “Somos Tão Jovens” soe inapropriado, “bonitinho” demais para refletir as insatisfações e perturbações do líder do Legião Urbana. Este “Faroeste Caboclo” o representa melhor, tanto por ser cinema de mais qualidade, em todas as suas destrezas técnicas, quanto por fugir de gêneros habituais, apresentando-nos a um western trágico como pede a canção que o inspira.

Tendo como um de seus principais acertos o fato de não seguir à risca a história que a música conta, a trama capta a essência da vida turbulenta de João de Santo Cristo (Fabrício Boliveira), um homem que tem os próprios códigos morais, bastante destemido, que não hesita em  fazer justiça com suas mãos. É assim que ele chega a Brasília, apresenta-se ao distante parente e traficante Pablo (César Trancoso), foge da polícia corrupta, conhece Maria Lúcia (Ísis Valverde), apaixona-se, passa a ser odiado pela gangue concorrente e protagoniza um dos duelos mais conhecidos da história da música brasileira, com o covarde Jeremias (Felipe Abib).

E tudo acontece com muita intensidade. René Sampaio, estreando na direção de um longa-metragem, realiza um trabalho que é tão violento quanto apaixonante. É fácil ser envolvido por essa história idealizada, mas com doses exatas de realismo. Tudo porque não há exageros no trabalho de Sampaio. Seu faroeste guarda momentos de planos mais ousados, típicos do gênero, como no embate final, e em vários em que exalta a força de João, apenas realçando seus grandes e amedrontadores olhos. Em outros, ele deixa-se levar pela poesia, pela pura sensibilidade, o que ajuda a dar a película um ar de originalidade tão especial.

Com a trilha sonora tocante de Lucas Marcier, o diretor dá profundidade aos seus personagens e foca-se nas relação entre eles. É utilizando-se dela que ele apresenta João a Brasília coberta de “luzes de Natal”, estabelecendo de imediato uma conexão entre os dois. É também por causa do dedilhar de violão da música de Marcier e da montagem dinâmica de Marcelo Moraes que seu amor pela Maria Lúcia adorável de Ísis Valverde seja tão convincente e particular, o que também é mérito do roteiro de Marcos Bernstein (também ironicamente responsável por “Somos Tão Jovens”) e Victor Atherino, que, mesmo não economizando no sexo e no uso de drogas, ainda exibe sequências de carinho e companheirismo.

Já com a fotografia escurecida de Gustavo Hadba, Sampaio constrói o trágico, o violento. Trabalhando com sombras, Hadba ajuda a ressaltar a aura de temor e destemor, como diz a canção, que circunda a forte interpretação de Fabrício Boliveira. E por meio dela, o diretor transforma a capital federal em um cenário inusitado, mas apropriado de um western, que se torna ainda mais perigoso durante a noite. Afinal, é lá que os foras-da-lei são encobertos e protegidos pelos que fazem as leis. Pena que o tão esperado duelo final não faça juz à intensidade do restante do filme e não possua um grande impacto emcional.

A culpa aqui fica por conta do roteiro e do trabalho de Felipe Abib. Exagerando na composição de Jeremias, seja ao deixar de lado a obsessão dele por Maria Lúcia ou fazê-lo um estereótipo de vilão, o script e o ator acabam por fazer com que o antagonismo entre ele e João perca força. Essa função é melhor exercida pelo Marco Aurélio de Antônio Calloni, o policial corrupto que não hesita em humilhar o rapaz. Talvez a conexão desagradável que João possua com profissionais irresponsáveis da área, desde sua infância, coopere para que o público “identifique-se” mais com a rivalidade entre os dois.

Mas de resto, Bernstein e Atherino elaboram uma história fascinante, eminentemente cinematográfica, que desenvolve e amplifica a mensagem da música. Personagens novos são introduzidos, a infância de João é reduzida em tempo, mas não em impacto psicológico, e modificações do destino do personagem principal demonstram-se necessárias. Mas nada é gratuito e desrepeitoso. Pelo contrário. “Faroeste Caboclo” entende a essência do universo criado por Renato Russo e sua Legião Urbana ainda em 1979 e faz dele algo extremamente vistoso e intenso, que se não é tão transgressor quanto a música, deixa sua marca na mente do público.

Darlano Didimo
@rapadura

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