Tendo como ponto de partida um assalto, o novo longa do cineasta britânico nos leva por uma jornada visual pela mente de seu protagonista, em um jogo mental de gato e rato visualmente fascinante.
Danny Boyle é um cineasta que gosta de mergulhar fundo na psique de seus personagens e que evita repetir gêneros, sempre dando a seus diversificados longas marcas visuais e narrativas que os tornam imediatamente reconhecíveis pelo seu estilo estético. Neste “Em Transe”, o britânico adapta para o cinema um filme para a TV cujo roteiro o permitiu colocar a ação, de fato, dentro da mente de seu protagonista.
Simon (James McAvoy) trabalha como leiloeiro em uma famosa galeria de arte. O local acaba sendo o cenário de um ousado roubo orquestrado pelo criminoso profissional Franck (Vincent Cassel), com a ajuda do próprio Simon. No entanto, o rapaz escondeu o valioso produto do crime e, após um golpe na cabeça, não lembra mais onde a obra está. Sem saída, Franck recorre a Elizabeth Lamb (Rosario Dawson), uma hipnotista que pode recobrar a memória de Simon. Segredos começam a emergir entre as partes, em um perigoso jogo de gato e rato, onde as fronteiras entre caça, caçador, realidade e sonhos começam a se misturar.
A abertura do filme lembra muito um heist movie (filme de assalto) extremamente compactado, remetendo inclusive ao eficiente “O Plano Perfeito”, até mesmo por incluir um monólogo do personagem principal direcionado à plateia. Estes primeiros minutos são os mais convencionais da produção que, a partir daí, se torna uma verdadeira caixa de areia para Boyle e seus colaborados, que aproveitam o aspecto onírico da história ao máximo.
Especialmente deve ser louvado o trabalho do diretor de fotografia Anthony Dod Mantle que, de maneira econômica, navega por diferentes ambientes (reais ou mentais), criando identidades visuais para cada um, indo desde cores frias e ângulos desconfortáveis (como no tenso diálogo envolvendo o trio principal dentro de um carro) até uma paleta acolhedora e alegre em uma das fantasias de Simon.
Paralelos com “A Origem” são inevitáveis, mas enquanto Christopher Nolan transportou para a tela o subconsciente de uma maneira mais analítica, pouco se utilizando do surrealismo em sua narrativa, Boyle se permitiu brincar mais com essa ausência do real que lhe foi dada, trabalhando com maior liberdade e fugindo de uma lógica mais conservadora, em uma mistura de noir e fantasia psicológica, mantendo o espectador atento e maravilhado ao que é projetado.
Para criar esse clima mutável, a fotografia trabalha em uníssono com um design de produção extremamente inteligente (reparem a estrutura labiríntica da casa de Franck em um momento e a presença opressora da tela no apartamento de Simon quando este recebe visitas) e com a maravilhosa trilha de Rick Smith (que inclui até mesmo a própria Rosario Dawson em mais que apropriada canção sobre “o sonhador”). Todos esses elementos são mixados pela excelente montagem de Jon Harrison, que os condensa em um ritmo, com o perdão do trocadilho, hipnótico.
O trio de protagonista está fantástico. James McAvoy trabalha seu personagem como uma tela em branco, inicialmente pura que, aos poucos, vai sendo pintada com tons cada vez mais sombrios, tornando-se especialmente assustador quando o vemos dando vazão a um lado sádico de sua personalidade que, até pouco tempo, parecia plácida e McAvoy explora muito bem esse desafiador crescendo de seu personagem.
Já Rosario Dawson é uma versão modificada de uma femme fatale que, mesmo tentando manter o controle o tempo todo, nos permite ver que possui um segredo, revelado por meio de um choro, pouco depois de sua primeira aparição em cena. A verdadeira natureza de Elizabeth é um dos mais intrigantes mistérios da fita, tornando-a altamente sedutora. Finalmente, Vincent Cassel surge como um criminoso impiedoso para, aos poucos, revelar-se cada vez mais fragilizado, com seu Franck conquistando aos poucos alguma simpatia do público.
“Em Transe” enfrenta sua dose de problemas. As excessivas reviravoltas presentes no terceiro ato atrapalham um pouco a experiência e acabam por enfraquecer a produção, especialmente em sua estrutura. Mas é algo mínimo em comparação com seus aspectos positivos, o que torna essa ambiciosa empreitada de Danny Boyle mais um acerto dentro da carreira deste ótimo diretor.