Longa baseado em clássico da literatura nacional nos convida a ver o mundo com os olhos de uma criança em busca de afeto e compreensão.
O romance literário juvenil “Meu Pé de Laranja Lima” foi publicado em 1968 pelo escritor brasileiro José Mauro de Vasconcelos. Com o sucesso comercial, o livro foi traduzido para dezenas de línguas e adaptado para diversas mídias. No cinema, a obra teve uma versão de 1970, realizada por Aurélio Teixeira, que até 2012 era a única. Eis que, ano passado, a história ganhou outra versão para as telonas, desta vez dirigida por Marcos Bernstein.
Inspirado na própria infância de Vasconcelos, o enredo foca em Zezé (João Guilherme Ávila), um menino pobre que vê nas traquinagens um refúgio dos problemas familiares. Com o pai (Eduardo Dascar) desempregado e ausente e a mãe (Fernanda Vianna) doente e conformada, Zezé é castigado violentamente por suas travessuras, que nada mais são do que o reflexo da falta de atenção.
Criativo e sonhador, o garoto preenche essa lacuna emocional com fantasias, dentre as quais o pé de laranja lima de seu quintal, batizado de Minguinho, é seu principal companheiro e confidente. Ainda assim, ele necessita de uma figura paterna, encontrada na pessoa mais inusitada, o português Manoel (José de Abreu), conhecido pelas crianças da cidade como Portuga. Antes visto por Zezé como um senhor mal humorado, Portuga começa a estabelecer um vínculo amistoso com o garoto que alivia a carência afetiva de ambos.
O ator mirim que dá vida ao protagonista não decepciona e sustenta o longa, sendo convincente até nas cenas de maior carga dramática. Ótima escolha de elenco, já que a proposta narrativa de Bernstein – que também assina o roteiro ao lado de Melaine Dimantas – visa desenvolver a história a partir do olhar de Zezé, exigindo do personagem carisma e uma dimensão psicológica autêntica. O experiente José de Abreu também consegue nos cativar com seu Portuga, construindo boas interações com Ávila e dando consistência à espinha dorsal do filme, que é a relação de amizade entre os dois. Além destes, destaca-se a breve e intensa participação de Emiliano Queiroz como Edmundo, tio de Zezé.
Bernstein demonstra sensibilidade ao tornar reais as fantasias do peralta, como o galho do pé de laranja lima que se torna um cavalo branco e a pipa que alça voo mesmo depois de destruída injustiçadamente pela irmã mais velha, em um das cenas mais marcantes da película. A escolha da voz da pequena árvore como sendo a mesma de Zezé em um tom mais grave é ótima, mas, no momento em que isso é explicitado visualmente, perde-se o contato com o olhar do personagem, empurrando o espectador de volta para o papel de mero observador.
A ausência de efeitos visuais na construção do imaginário de Zezé, além de fornecer um caráter orgânico que permite ao espectador perceber tais fantasias de forma concreta – assim como o próprio personagem o faz –, também valoriza a fotografia de Gustavo Hadba e a montagem de Marcelo Moraes, que dão conta de gerar por meio de estratégias práticas os efeitos técnicos e emocionais intencionados.
Apesar disso, alguns descuidos do roteiro e do ritmo da montagem prejudicam a fluidez de determinados momentos importantes na construção do personagem. Um exemplo é a cena em que Zezé provoca a queda de uma mulher grávida e é castigado fisicamente por isso. Tudo acontece de forma apressada, permitindo o entendimento do público sobre o fato, mas inviabilizando uma maior empatia por parte deste em relação à situação do personagem.
Esta versão de “Meu Pé de Laranja Lima” merece ser apreciada não por contar novamente uma bela história já conhecida e adorada por muitos, mas sim por se desprender respeitosamente da obra original ao mesmo tempo que constrói uma visão particular sobre ela. Não é apenas a obra de José Moura de Vasconcelos transposta para o cinema, é a reação artística de Marcos Bernstein a este romance.