Bryan Singer quase acerta na releitura de "João e o Pé de Feijão".
Desde o sucesso esmagador de “Alice no País das Maravilhas”, de Tim Burton (com arrecadação de mais de US$ 1 bilhão), as reciclagens de fábulas infantis – tradição moralista europeia – tem progressivamente tomado mais espaço na indústria de filmes voltados ao público infanto-juvenil. Não me refiro aqui a obras como “Shrek”, que remontam a mítica do conto de fadas para desconstruí-la em farsa, e sim a outras como “A Garota da Capa Vermelha”, “Branca de Neve e o Caçador”, “João e Maria – Caçadores de Bruxas”, “Oz – Mágico e Poderoso” ou até mesmo “A Fera”. Todos esses filmes encontram intercessão na modernização, estilização e imbecilização do seu material de origem.
Dentro de um contexto marcado pelo sucesso comercial desse novo nicho de produção que emerge, surge “Jack – O Caçador de Gigantes”, maior fracasso de bilheteria do ano até o momento. Dirigido por Bryan Singer (responsável pelos dois primeiros “X-Men” e “Operação Valquíria”) e estrelado por Nicholas Hoult (que trabalhará de novo com o cineasta na sequência de “X-Men – Primeira Classe”), o longa faz par com as outras adaptações fabulares que lhe são contemporâneas, tem ponto de partida na história de “João e o Pé de Feijão”, mas toma rumos alternativos como maneira de dialogar com seu público alvo. O resultado é um filme palatável que fica no limbo do meio termo.
Logo na cena de abertura de “Jack – O Caçador de Gigantes” é apresentado o casal protagonista por meio de uma montagem ritmada (e rimada!) de metalinguagem. Jack (Nicholas Hoult, o João) é um jovem camponês apaixonado por histórias de aventuras fantásticas, mas impossibilitado de viver suas próprias pelo estrato que ocupa no sistema de castas. Isabelle (Eleanor Tomlinson) é uma princesa igualmente apaixonada por literatura fantástica, entretanto, apesar de ocupar um espaço social diametricamente oposto ao de Jack, se vê tão presa quanto ele diante da vida que leva.
A premissa simplista da dinâmica do casal só reforça as construções dos arquétipos clássicos no desenvolvimento dos personagens envolvidos na trama; arquétipos esses que serão explorados de maneira eficiente e a favor da narrativa (sempre autoindulgente): o casal misto (nobre e plebeu), a donzela em perigo, o camponês bem intencionado, o pai super protetor, o conselheiro inescrupuloso, o ajudante atrapalhado, o gordinho engraçado, o cavaleiro nobre e corajoso, enfim. Não há tridimensionalidade no caráter ou nas ações dos indivíduos apresentados naquele universo. Bryan Singer parece ter uma percepção autocrítica rara em relação à condição de sua narrativa e, por isso mesmo, o esvaziamento dos seus personagens soa quase sempre como uma brincadeira – se a brincadeira é de bom ou mau gosto, o espectador é quem decide.
Como em “João e o Pé de Feijão”, Jack é dissuadido a trocar uma cabeça de gado por feijões mágicos de valor inestimável, contudo, na releitura em questão, os feijões são apenas o ponto de partida para a revelação de uma verdadeira teia de intrigas. Há uma sucessão de reviravoltas, ascensão e queda de vilões e a constante ameaça do fim da era dos homens e começo da era da magia (ou será que é o contrário?).
O uso da computação gráfica em longas como este não é meramente pontual. Ela tem fundamental importância diegética na narrativa e conduz quase todo o filme, tendo em vista que mais de 90% do que se vê em tela é fruto artificial do CGI. São nos efeitos digitais que Bryan Singer se perde. A arte, o maior atrativo, é tão estéril quanto a caracterização dos gigantes. Tudo parece ter sido constituído com ferramentas primárias, o que é paradoxal pra uma produção de US$ 195 milhões. Além de primitiva, a fisionomia dos gigantes parece ser uniforme (além dos dois gigantes de mais destaque na narrativa, os outros são meros clones). São detalhes como esse, ignorando ainda o mau uso do 3D (Singer insiste em usar constantes planos fechados e ignorar a profundidade de campo), que enfraquecem o filme, que tinha tudo para superar qualquer “Alice no País das Maravilhas” da vida.
A história virou lenda e a lenda virou mito, diz o pai de Jack logo no início da narrativa. E não é que Bryan Singer soube aproveitar a alcunha? Não que essa onda de re-re-readaptações de contos infantis sejam brilhantes, mas temos aqui um exemplar promissor; ou mesmo palatável.