Embora derrape principalmente ao inserir um elemento excessivamente distrativo em uma já delicada narrativa, essa reunião dos Irmãos Wachowski com o talentoso cineasta alemão Tom Tykwer não faz feio perante os currículos dos seus diretores.
Quando Natalie Portman estava filmando “V de Vingança”, ela presenteou os irmãos Wachowski com uma cópia de “Cloud Atlas”, livro do escritor inglês David Mitchell. Eles acharam a obra tão interessante que resolveram transformar aquele material, que retrata seis histórias em diversos períodos de tempo diferentes, em um filme, contando para isso com a ajuda do também diretor Tom Tykwer (“Corra Lola, Corra”).
Neste “A Viagem” os três renomados cineastas cuidaram juntos do roteiro e partilharam a direção do projeto de modo pouco usual. Enquanto Larry e Lana Wachowski lidariam três das tramas, Tykwer lidaria com a outra metade, com ambas as unidades não partilhando equipes ou equipamentos, apenas o elenco. O resultado, por mais estranho que possa parecer, é deveras homogêneo, mostrando que o trio se encontrava bastante entrosado. No entanto, a audaciosa empreitada não deixa de ter engasgos.
As seis tramas são interligadas pelo fato de serem histórias descobertas pelos personagens da trama seguinte de diversos modos, através de cartas, livros, filmes, vídeos ou mesmo através de tradição oral. A ideia é mostrar como os atos de uma pessoa, por mais simples que sejam, podem ter imensos impactos no futuro e, ao mesmo tempo, retratar a luta da humanidade para se libertar do ciclo vicioso de seus erros.
Assim, acompanhamos a jornada de um advogado (Jim Sturgess) em um navio no século XIX, a luta de um jovem compositor nos anos 1930 (Ben Whishaw) para deixar sua marca no mundo, a busca de uma repórter setentista (Halle Berry) pela verdade, um velho editor literário (Jim Broadbent) lutando por sua liberdade nos tempos atuais, a garçonete futurista criada geneticamente Somni-451 (Doona Bae) numa guerra pelo seu destino e um homem em um mundo pós-apocalíptico (Tom Hanks) que procura se redimir por uma omissão que lhe custou muito caro.
Considerando o orçamento de US$ 100 milhões de dólares desta produção independente (sem falar da fama dos irmãos Wachowski com a trilogia “Matrix”), o trio de diretores teve sobre suas cabeças a responsabilidade de entregar um longa marcante do ponto de vista técnico, algo que conseguiram através de bons efeitos especiais, diretores de fotografia competentes e uma bela direção de arte, criando identidades visuais próprias para cada plot, mas sem fazer com que parecessem pequenos trechos de filmes diferentes, em um equilíbrio que não deve ter sido fácil de alcançar.
No entanto, há a questão do elemento espírita na trama de “A Viagem” que foi tratada pelo trio com a sutileza de uma marreta. A presença da estranha marca de nascença na forma de um cometa parece não ter sido suficiente para eles estabelecerem o elo entre os protagonistas de cada história, com os diretores então colocando todo o elenco principal para aparecer (em maior ou menor grau) em todas as tramas, não importando a idade, gênero ou etnia dos personagens.
Essa escolha técnica e narrativa dos realizadores, por mais que tenha seus atrativos do ponto de vista cênico (permitindo atores do calibre de Tom Hanks e Jim Broadbent, por exemplo, criarem diversos personagens completamente diferentes em uma mesma produção), acaba por tirar um pouco o foco da história, com o público se vendo em um jogo de “adivinhe quem é?” com cada uma daquelas figuras. Jogo esse incentivado pelo próprio longa, que pede para que as pessoas não saiam da sala antes de verem nos créditos quem vive quem.
A perda de foco ocorre especialmente nas transformações mais esdrúxulas, como na de Hugo Weaving como um asiático que persegue Somni-451 e também vivendo uma sádica enfermeira que aterroriza o editor vivido por Broadbent. Se, por um lado, isso serve para ressaltar o caráter estático de algumas almas (principalmente com Weaving, sempre surgindo como um agente determinado a manter o status quo), a sensação de estranhamento com algumas dessas escalações cria um ruído que distrai o espectador de uma história imensamente dependente de sua capacidade de montar o quebra-cabeça que forma essa narrativa.
A montagem, feita por Alexander Berner, se torna mais morosa em alguns momentos, algo absolutamente comum em um projeto dessa complexidade, mas tem sucesso no principal, que é ajudar o público a entender a ligação dentre as diferentes linhas temporais. A trilha sonora é pouco memorável, algo complicado de entender, até porque o título original do filme vem de uma composição musical de um dos personagens.
Os fãs de ficção científica também terão alguns belos easter-eggs, como o número “451” no nome de Somni (tirado diretamente do clássico “Fahrenheit 451”) e a tirada envolvendo Soylent Green (que acaba se mostrando importante posteriormente). Mesmo arrastado em certos momentos e com o incômodo ruído causado pela maquiagem, “A Viagem” é um bom e ambicioso filme, com uma mensagem deveras encorajadora sobre a importância de cada um de nós para o amanhã.