Longa irregular conta história de fã que respira obra do cineasta em sua pacata rotina.
Em 1985, Woody Allen lançou “A Rosa Púrpura do Cairo”. Na trama, Cecilia (Mia Farrow), após ir ao cinema diversas vezes assistir ao filme homônimo, tem de lidar com a fantástica situação em que o galã da tela grande (Jeff Daniels) sai da tela e se apaixona por ela. Vinte e oito anos depois, vemos Allen saindo da realidade e entrando na ficção em “Paris-Manhattan”, uma homenagem do cinema francês ao veterano diretor, roteirista e ator.
Estreia em longa metragem da cineasta Sophie Lellouche (do curta “Dieu, que la nature est bien faite!”), o filme conta a história de Alice (Alice Taglioni). Fã do trabalho do diretor desde os 15 anos, a solitária personagem passa seus dias entre o deslocamento de si mesma no mundo que a rodeia, seja sobrevivendo à conturbada relação com a irmã mais nova, Hélène (Marine Delterme) ou em sua busca desenfreada – e mal sucedida – por um amor.
Assim, Alice frequenta festas e eventos com Hélène, hoje casada com Pierre (Louis-Do de Lencquesaing), homem que, prontamente, foi tirado de seus braços. O casal tenta “desencalhar” a primogênita, em uma mistura de redenção e pena, que só faz com que Alice se sinta cada vez mais alheia ao mundo. Além disso, ela assume a farmácia da família, cujo pai (Michel Aumont) lhe impõe como responsabilidade incapaz de se esquivar.
Sua única fuga da realidade se dá por meio de Woody Allen e sua extensa obra. Diante do pôster dele que mantém em seu quarto, Alice “conversa” com o cineasta de “Manhattan” (1979), em confissões que entrelaçam sua vida pacata e frases ditas pelo próprio Allen. Assim, neste vai e vem, a personagem traçará seu próprio caminho, bem como fez Alice de “Simplesmente Alice”, longa de 1990, em que Mia Farrow reavalia sua própria vida.
Os diálogos casam com o roteiro da própria diretora, em frases rápidas, inteligentes e profundas da mente genial de Allen, que lhe permitem suportar uma rotina de timidez, decepções e vazios que lhe acometem. Porém, tudo muda de figura quando conhece Victor (Patrick Bruel), que nunca viu um filme sequer de Allen.
Assim, Alice e Victor acabam se envolvendo em uma comédia romântica que, embora não tenha a qualidade e a beleza dos longas de Allen, bebe da fonte em diversos aspectos. Seja nos já citados diálogos dinâmicos, na trilha sonora carregada de blues e jazz ou em personagens em busca de algo que talvez nem saibam o que, a personagem acaba por aprender com o franzino de óculos grandes. Afinal, assume, quando perguntada o por quê de ser tão fã dele: “ele tem a capacidade de me dizer o melhor”.
E, assim como a vida imita a arte (e/ou vice e versa), Alice verá que as surpresas da vida nos acometem quando menos esperamos e das formas mais inusitadas. E como pequenas peças de um quebra-cabeça que vão (re)construindo a história da protagonista, “Paris-Manhattan” ainda tenta inserir subtramas que prejudicam – e muito – o resultado final, como o drama de Hélène e Pierre diante da rebelde filha adolescente. Sophie Lellouche ainda tenta se abraçar a esta história para expor a magia que une ficção e realidade em um romance pincelado entre a jovem Laura (Margaux Châtelier) e Achille (Paul-Edouard Gondard).
O próprio desenvolvimento de Alice é o que torna o filme irregular, em que a presença de Allen vai diminuindo até sumir quase por completo. A mudança brusca faz certo sentido (infelizmente), visto que ele era quem lhe ensinava a viver e, quando passou a conseguir isto sozinha, Alice pôs o companheiro de lado. A diretora, porém, poderia ter prestado uma homenagem mais profunda e dedicada e não tornado “Paris-Manhattan” uma cópia de menor qualidade dos longas mais antigos de Allen.
Porém, mesmo assim, é curioso observar o humor francês discreto e delicado do filme que, se não nos ganha no carisma dos personagens, oferece pérolas do renomado cineasta, que sempre encheu suas obras de anseios, inseguranças, amores, traições, humor e inteligência. Embora não creditada, “Paris-Manhattan” ainda conta com a participação de Allen, como ele mesmo, no recado final a ser dado a Alice. E, assim, emenda os 77 minutos em uma cena que, abruptamente, encerra toda a trajetória da personagem, em um filme que começa melhor do que termina.