Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

As Aventuras de Pi (2012): Ang Lee mostra uma aventura magnífica

Baseado no livro "A Vida de Pi", longa surpreende ao entregar uma superprodução repleta de significado, lidando com a natureza humana em uma situação impossível.

A sensação de ser surpreendido por um filme nos dias de hoje é deveras rara, especialmente considerando o bombardeio de peças publicitárias que o público está sujeito. Mas este “As Aventuras de Pi” consegue não apenas pegar a audiência no contrapé, como também entregar um produto bem mais interessante que a simples “aventura” prometida em seus trailers e em seu infeliz título nacional.

O roteiro de David Magee (“Em Busca da Terra do Nunca”) é baseado no livro “A Vida de Pi”, do autor Yann Martel. Antes de entrar no mérito da produção, já aviso que esse texto julgará o filme por ele mesmo, com a obra literária que o inspirou (e sua estranha relação com “Max e os Felinos”, do escritor brasileiro Moacyr Scilar) não encontrando espaço aqui.

Dirigida por Ang Lee, a fita é extremamente corajosa, não apenas do ponto de vista narrativo, mas também do ideológico, abraçando diferentes crenças e trabalhando com um estilo de montagem tão particular quanto a fé do personagem-título. No “presente”, o pacato indiano Pi Patel (Irrfan Khan) é abordado por um escritor canadense (Rafe Spall), que o questiona sobre sua vida após a indicação de um amigo em comum dos dois.

Pi passa a contar pequenas “anedotas” sobre a origem de seu nome incomum, sua relação com as diversas religiões, o zoológico que era mantido por sua família… Esses elementos montam um mosaico que se completa com o traumático naufrágio do cargueiro que levava Pi, sua família e os animais do zoológico da Índia para o Canadá. O rapaz sobrevive em um bote salva-vidas, tendo como companhia o selvagem tigre Richard Parker. A partir daí, são mostradas a animosidade entre os dois náufragos e uma série de questionamentos sobre as naturezas daquelas criaturas naquele ambiente inóspito para ambos e sobre o papel da fé na sobrevivência humana.

O título “As Aventuras de Pi” logo se mostra deveras equivocado. Ora, a produção não narra uma aventura, mas mostra um narrador contando sua história. O público torna-se ouvinte de Pi em uma retrospectiva de sua vida, filtrada através de sua memória afetiva e incrível imaginação. Ang Lee abraça esse conceito e percebe que não está lidando com uma narrativa “factual”. O cineasta usa a tela para pintar um quadro com todas as nuances de seu protagonista, nos mostrando como o Pi adulto enxerga o mundo e as lembranças de seu “eu” mais moço, com todas as idealizações possíveis.

Enquanto a versão do personagem interpretada por Irrfan Khan prima pela placidez e calma, com um olhar nostálgico ao lembrar-se do passado, suas versões mais jovens são quem chamam mais atenção, até por mostrarem aos poucos como aquele homem se formou. A perda da inocência que Pi tinha aos 12 anos, quando vivido por Ayush Tandon, acaba impactando sua epopeia quase solitária em sua adolescência, onde Suraj Sharma vive um rapaz mais rebelde, sedento por novas descobertas, embora um tanto mais desesperançoso. Sharma, aliás, é a grande descoberta da produção, atuando com uma emoção ímpar mesmo quando divide a tela com o nada digital. A relação entre Pi e o tigre é o coração da trama, até porque implica no entendimento que o rapaz faz de si mesmo naquele ponto delicadíssimo de sua vida.

A história ainda é temperada por dois elementos antagônicos e complementares: a razão, representada pelo pai do protagonista (ressaltada na trama pelo próprio apelido do personagem-título, advindo da letra do alfabeto grego que representa a razão entre a circunferência de um círculo e seu diâmetro) e a religiosidade tão particular de Pi, incentivada por sua mãe, que mistura elementos do hinduísmo, catolicismo, judaísmo e das crenças muçulmanas, em um verdadeiro caldeirão de culturas.

As metáforas apresentadas permitem um sem-número de interpretações, fazendo com que cada pessoa tenha uma experiência própria com a obra e formule seu próprio entendimento, mesmo que haja um didatismo exagerado no seu terço final. Aproveitando-se dessa liberdade, Lee lança mão de planos belíssimos, que se beneficiam do 3D de modo dar maior profundidade aos sonhos e devaneios de Pi, às vezes passando uma sensação maravilhosa de voo, especialmente nas ótimas sequências da piscina francesa e da definição de Vishnu.

Ao mesmo tempo, o efeitos de tridimensionalidade ressaltam a imensidão (e solidão) do que Pi e o tigre Richard Parker passam. Portanto, o 3D aqui não possui apenas um caráter estético, reforçando o longa também de um ponto de vista dramático, algo raríssimo em superproduções deste porte financeiro. A criação digital dos ambientes e dos animais é perfeita, especialmente no caso do imenso felino, mostrando-se uma tarefa quase impossível distinguir o tigre real daquele criado através de computação gráfica.

A montagem de Tim Squyres, colaborador habitual de Lee, alterna de maneira natural os momentos do “presente” com a história sendo contada por Pi, com ideias e abstrações colocadas em ordem sequencial, combinando perfeitamente com o visual do filme, que se aproxima mais do fantástico e do onírico que do real, em um maravilhoso trabalho do chileno Claudio Miranda. O elenco coadjuvante, a despeito de seu papel reduzido, é deveras competente, com a película arriscando-se até mesmo a contar com uma reduzidíssima ponta do talentoso Gerard Depardieu, em uma rude participação que acaba sendo crucial para a história.

O escritor vivido por Rafe Spall não representa o autor Yann Martel, mas ao próprio público que, após a sessão, decidirá como irá aceitar o que lhe foi contado. Ao dar esse salto de fé, acreditando em seus espectadores, o longa já demonstra respeito para com estes, algo que já o torna digno de admiração, mostrando que Ang Lee e David Magee entenderam o espírito desta magnífica história.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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