Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Corações Sujos (2012): Amorim volta a tratar da desconstrução do indivíduo pela sociedade

Tendo o nacionalismo extremado e um evento histórico real como motes para a derrocada de um homem de bem, esta produção funciona basicamente como uma continuação espiritual de "Um Homem Bom", trabalho anterior do diretor.

Em 2008, o diretor austro-brasileiro Vicente Amorim lançou o filme “Um Homem Bom”, um estudo deveras devastador, situado na alvorada da Alemanha nazista, sobre como a pressão de uma sociedade e o próprio momento histórico podem levar à corrupção de uma pessoa de bem. Com este “Corações Sujos”, o cineasta retorna ao tema – e ao Brasil – em uma obra que casa tematicamente com seu trabalho anterior.

A produção é inspirada pelo livro homônimo de Fernando Morais, adaptado pelo roteirista David França Mendes, que trabalhou com Amorim em “O Caminho das Nuvens”. A trama se passa pouco tempo após o armistício da Segunda Guerra Mundial. Mesmo com o fim do conflito e a rendição do Japão, as restrições aos colonos nipônicos no Brasil ainda não cessaram, estando estes proibidos de se reunirem, escutarem ao rádio ou mesmo saudarem sua bandeira.

Em uma pequena cidade do interior, formada basicamente por imigrantes japoneses, conhecemos o fotógrafo Takahashi (Tsuyoshi Ihara), um homem pacato, bom marido e vizinho que, influenciado pelo carismático coronel Watanabe (Eiji Okuda), acredita piamente que o Japão ganhou a Segunda Guerra e que todos os que creem no contrário são traidores. Pouco a pouco, a situação estoura em um rompante de violência, mergulhando aquela outrora pacífica comunidade em tragédia e sangue, arruinando diversas vidas nesse processo.

As comparações com “Um Homem Bom” são inevitáveis, haja vista que esta nova película de Amorim é basicamente uma “continuação espiritual” daquela fita. Algumas cenas, como a queima de livros e cadernos em japonês, encontram ecos em momentos análogos na produção que fora estrelada por Viggo Mortensen quatro anos antes, sendo impossível que essas semelhanças não sejam propositais.

Neste sentido, Tsuyoshi Ihara se mostra a altura de seu antecessor. Seu Takahashi é um homem completamente dividido entre as crenças que crê serem sagradas e sua própria moral. A desconstrução de sua persona é retratada de modo aterrador por Ihara, fazendo com que o público continue a se importar com aquele homem, por mais que ele se distancie mais e mais do simpático fotógrafo que conhecemos no início do filme.

A destruição de Takahashi é testemunhada por sua esposa, Miyuki, vivida por Takako Tokiwa. A despeito de seu voice over abrir e fechar a projeção, Tokiwa tem um papel basicamente passivo como a professora local, encarnando o ponto de vista da audiência, com sua personagem presenciando impotente a destruição do homem que amava.

Como forças antagônicas na colônia temos o racional Sasaki e o fanático Watanabe, interpretados respectivamente por Shun Sugata e Eiji Okuda. O primeiro nos apresenta a uma figura honrada, que preza a verdade acima de sua própria vida, sempre colocando os interesses dos colonos em primeiro lugar, com Sugata expressando, com cada linha de seu rosto, o peso que Sasaki sente ao tomar cada uma de suas difíceis decisões.

Okuda, por sua vez, tem um trabalho mais espinhoso, tendo em vista que seu Watanabe é um líder no melhor estilo “Reverendo Jim Jones”, capaz de levar seus liderados a fazerem o que ele quiser. O ator cumpre muito bem seu papel, embora este acabe se tornando menos interessante com no terço final da projeção, graças a um ponto de virada maniqueísta presente no roteiro que enfraquece o ex-militar.

Ainda temos a pequena estreante Celine Fukumoto como Akemi. Mesmo sendo graciosa e mostrando a inocência que exige a personagem, Fukumoto não se sai tão bem nos momentos mais dramáticos, que exigem mais da jovem atriz. Eduardo Moscovis faz uma participação especial como o sub-delegado que tenta manter a ordem nesta comunidade brasileira formada essencialmente por japoneses. Ele possui algumas nuances interessantes, como se entregar ao preconceito em um momento de especial frustração e, ao mesmo tempo, respeitar a cultura daquelas pessoas, mas acaba sendo mal aproveitado, passando por incompetente durante boa parte do filme.

A ótima recriação de uma cidadezinha agrícola da primeira metade do século XX mostra o belo trabalho de direção de arte por parte de Amorim e sua equipe. No entanto, a fita possui alguns pequenos problemas técnicos que se acumulam no decorrer da projeção e chegam sim a incomodar.

A narrativa é menos fluida do que deveria, pois não possui uma âncora, com seu foco flutuando de maneira um tanto quanto desajeitada entre  Takahashi, Miyuki e Akemi.  Amorim ainda propõe uma metáfora visual, com uma visão distorcida lembrando a câmera antiga do protagonista, com esta figura de linguagem jamais alcançando todo o seu potencial nem sendo bem encaixada no decorrer da trama (ao contrário do que acontecia nos delírios musicais em “Um Homem Bom”).

Esses tropeços acabam prejudicando a montagem da película, bem como atrapalhando um pouco o desenlace da mesma. No entanto, a força da história de decadência humana retratada na tela e o bom desempenho do elenco compensam os supracitados problemas, resultando em um bom filme, embora um tanto falho, funcionando como uma ótima sessão dupla com o seu irmão mais velho.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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