Filme cearense que já acumulou 30 prêmios em festivais é tematicamente melancólico e esteticamente belo.
“O cinema cearense atual carrega muita dor”, já disse Rosemberg Cariry, um dos maiores cineastas do Nordeste. Seu filho, o também cineasta Petrus Cariry, falou algo semelhante em relação à Cococi, cidade fantasma do interior do Ceará que serviu de locação para seu trabalho mais recente, “Mãe e Filha”, segundo longa da Trilogia da Morte, iniciada por “O Grão”. De fato, a obra transmite um clima de angústia e de tensão que vão ao encontro da proposta narrativa e dos próprios sentimentos dos personagens.
Naquele cenário melancólico, rodeado por uma fauna que parece ter nascido da própria terra e por ruínas que denunciam o abandono de quem ainda resiste ali, Laura (Zezita Matos) vive isolada em uma eterna espera pelo marido, que o tempo distancia cada vez mais. Fátima (Juliana Carvalho), a filha igualmente ausente, retorna à casa da mãe para que ela abençoe o neto natimorto. Durante sua estada na casa que um dia morou e que hoje é apenas uma lembrança quase esquecida, o processo de luto afeta ambas de modos diferentes, evidenciando o choque de gerações e a relação que cada uma tem com a morte.
As duas atrizes fazem um trabalho magnífico carregando todo o longa. As poucas falas são ditas de forma arrastada, como se tudo naquele local adquirisse um caráter sofrido. A expressão facial de cada uma já nos revela muito sobre as personagens: o conformismo e a negação da dor por parte da mãe, e o deslocamento e desprendimento por parte da filha.
O roteiro de Petrus, Rosemberg Cariry e Firmino Holanda é bastante econômico nos diálogos, dando um ganho de valor significativo a cada cena e permitindo-nos entrar nessa atmosfera simbólica com facilidade, além de valorizar o inteligente design de som de Érico Paiva. Deste, é válido citar a nota grave que permeia a narrativa, gerando tensão, mistério e amedrontamento, e o barulho repetitivo e incômodo do moinho que guarda uma metáfora de atemporalidade, fazendo rimas com o balanço da rede e com as batidas autoinfligidas da porta contra a cabeça de Fátima.
A direção de arte de Lana Patrícia tem o cuidado de não artificializar o cenário, integrando objetos antigos e desgastados às paredes deterioradas próprias da locação real. A tragicidade natural de Cococi também é valorizada pela excelente fotografia do próprio diretor, que compõe belos planos formalmente inspirados na arte da pintura e faz um trabalho entre luz e sombra utilizando sempre tons frios.
O longa traz uma camada mitológica que enriquece a percepção sobre a realidade cultural e existencial dos personagens. Os quatro vaqueiros que permeiam a narrativa são apresentados sempre de maneira intimidadora por meio de uma abordagem que flerta com o gênero de terror, uma das influências do diretor. Uma interessante sequência de planos fechados que revelam insetos passeando nas vestimentas de couro como se fossem seu próprio habitat demonstra como os vaqueiros, enquanto figuras simbólicas, são integrados à natureza.
Ousando entre o contemplativo – como nas sequências dos animais bovinos – e a crueza – como na controversa cena da galinha –, Cariry nos entrega uma obra que trabalha o sertão de um modo diferente do convencional. A seca não está no ambiente, e sim nos personagens; o sofrimento não é da carne, e sim do espírito; o realismo é relativo e menos importante. “Mãe e Filha” requer uma imersão total do espectador, mas o longa não apenas exige uma predisposição a tal, pois é dotado de ferramentas capazes de possibilitar isto por mérito próprio.