Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 04 de novembro de 2012

Elefante Branco (2012): dois padres em prol da miséria nas grandes cidades

Filme toca na ferida de um sistema social falho e cruel

Nas últimas semanas, a mídia brasileira voltou os olhos para a injusta situação dos índios Guarani-Kaiowá que, sem esperanças de se manter nas terras do Mato Grosso do Sul, declararam estar dispostos a um suicídio coletivo. Com crianças e mulheres no grupo, o Brasil percebeu a que ponto a marginalização de seu povo pode chegar.

Em “Elefante Branco”, novo filme de Pablo Trapero (de “Abutres” e “7 Dias em Havana”, que entrou recentemente em cartaz), o cineasta co-roteiriza, junto de Alejandro Fadel, Martín Mauregui e Santiago Mitre, a saga dos padres Julián (Ricardo Darín) e Nicolas (o ator belga Jérémie Renier), que dedicam sua vida a ajudar comunidades majoritariamente indígenas vivendo em situações subumanas.

Após uma situação traumática no Amazonas que deixa Nicolas consumido pela culpa e pela dor, o jovem reúne-se ao veterano Julián para dar continuidade ao trabalho em uma favela largada às traças pelo governo e alvo fácil da violência e do tráfico de drogas. Auxiliados pela assistente social Luciana (Martina Gusman), o trio une-se para poder oferecer o mínimo necessário à comunidade.

Assim, usam da fé e poder ainda existentes na Igreja Católica para arregaçar as mangas na reconstrução de um hospital público, um jardim de infância e de moradia digna, que beneficiariam cerca de 30 mil moradores. O título do filme, inclusive, é de total relevância, justamente por ser uma expressão que remete a obras públicas sem utilidade e cuja revitalização não se pagaria com relação a seu uso. Nenhuma novidade diante de governos (seja na Argentina, seja no Brasil) que, em busca do lucro, não se empenham diante de políticas de assistência pública. O SUS está aí e não nos deixa mentir, com pessoas morrendo aos montes por conta de espera no atendimento.

Expondo sem pudores as adversidades de uma minoria em busca do bem diante de uma realidade de crime constante, Julián, Nicolas e Luciana, fazem o que está ao seu alcance, seja buscando remédios, auxiliando jovens e crianças para um não envolvimento no tráfico (ou retirando-os dele), entre outras atividades. Porém, não bastasse o poderio que entrelaça marginalizados e governo, ainda temos a polícia e até os próprios criminosos que, ameaçados pela perda de hegemonia do poder que impõem, não veem com bons olhos a presença dos religiosos na favela.

Assim, diante de um descaso da qual já estão “acostumados”, a população vive em uma descrença e fúria latente, que geram brigas entre gangues rivais, colocando em risco a vida de todos, com juras de morte que saem das promessas e são postas em prática. Sem focar nos personagens de forma específica, “Elefante Branco” pincela as histórias pessoais, com jovens envolvidos nas drogas e dívidas pagas com pólvora.

O longa, considerado por alguns como um retrato predominante da sujeira de uma camada esquecida por muitos e temida por tantos outros, é tenso em seus 110 minutos de projeção. Como um caldeirão fervilhante prestes a transbordar, “Elefante Branco” não decepciona e mostra que, uma hora, a bomba explode. Afinal, tais pessoas cresceram em um ambiente onde a violência sempre foi a principal arma de defesa e ataque. A grande falha, entretanto, é deixar em segundo plano o bem que convive com o mal, aumentando ainda mais o medo de quem está do lado de fora daquele universo.

Para dar ainda mais destaque aos padres, “Elefante Branco” insere dois conflitos pessoais aos protagonistas, gerando uma empatia maior com seu público: Julian mantém em segredo um grave problema de saúde, enquanto Nicolas tem sua fé abalada pela proximidade com Luciana, que pode lhe fazer pendurar a batina. Pertinente, claro, até para não deixar o filme tão mais-do-mesmo do dia a dia do trio na comunidade.

Com uma direção firme, Trapero une bela fotografia, trilha que mistura orquestra e pop latino e extrai ótimas interpretações da dupla principal em sua (até então) inabalável dedicação, especialmente de Jérémie Renier, em uma mistura de força, beleza e juventude no papel do padre francês. Darín, como era de se esperar, oferece mais um personagem adorável, graças ao seu talento aliado a um sorriso franco e profundos olhos azuis.

Dedicado ao padre argentino Carlos Mugica, assassinado em 1974 e que se tornou um ícone de defesa aos menos favorecidos por sua atuação nos anos 60 e 70, “Elefante Branco” é um soco no estômago ao mostrar cenas dramáticas de forte impacto visual, como o corpo morto cravado de tiros levado em um carrinho de mão, o tiroteio que cerca Nicolas e Luciana e a invasão da polícia quando, finalmente, o caldeirão transborda em um caos incontrolável e instaurado.

Além disso, nesta linha tênue entre morrer e permanecer vivo, o filme entrega um epílogo cruel, de uma esperança doente, ausente. E, tendo noção de um universo tão próximo e, paradoxalmente, tão distante de muitos de nós, que fere e mata a cada dia, lembramos dos versos utópicos de “Casa no Campo”, de Zé Rodrix, eternizados na voz de Elis Regina: “eu quero a esperança de óculos”.

Léo Freitas
@LeoGFreitas

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