Fábula sobre duas crianças apaixonadas e solitárias em fuga é deleite para adultos e crianças. Vale a pena dar uma conferida.
ATENÇÃO: Essa crítica possui pequenos spoilers.
Grande destaque no Festival de Cannes (indicado à Palma de Ouro, inclusive) e no Festival do Rio, o novo filme do diretor norte-americano Wes Anderson (“Os Excêntricos Tenenbaums“, “Viagem para Darjeeling”) estreia em pleno Dia das Crianças. Nada mais propício, digamos, àqueles que ainda repousam em seus áureos tempos de criança e àqueles que ainda guardam lembranças dos tempos de meninice.
Com seu costumeiro ar vintage, de cores pastéis e um universo que vai além do real, Anderson volta em mais um filme (sua primeira aventura no universo infantil) para contar a história de Sam (Jared Gilman), um menino introspectivo e que se destaca por ser diferente dos outros garotos escoteiros. Comandado pelo escoteiro-mestre Ward (Edward Norton), o garoto, recentemente adotado por uma família pra lá de bizarra, tornou-se órfão recentemente.
Porém, certo dia, ele conhece a enigmática Suzy (Kara Hayward), depressiva e violenta, que vive com os três irmãos mais novos e os pais Laura (Frances McDormand) e Walt (Bill Murray), em uma família disfuncional. A mãe, por exemplo, está tendo um caso com o policial da região, o capitão Sharp (Bruce Willis) e o pai se embrenhou em uma melancolia cercada de autopiedade que tornou a convivência insuportável, até por não esconderem sua insatisfação em terem uma fila problemática.
Assim, a dupla decide fugir para, juntos, irem em busca daquilo que falta em suas vidas. Porém, a fuga une todos as pessoas que os cercam, indo até o narrador e guia da cidade (interpretado por Bob Balaban, clássico como Frank Buffay, o pai de Phoebe na saudosa sitcom “Friends”). Unindo o clássico com o vintage (a história se passa em 1965), o filme é um espetáculo visual aos fãs do surrealismo de Tim Burton, outro que fez escola com universos particulares e oníricos como Anderson.
Com seu eterno incômodo de interação entre os personagens, sempre melancólicos e introspectivos, “Moonrise Kingdom” (cuja tradução literal é “Reino do Nascer da Lua”), explora a saga de Sam e Suzy em descobrirem o gosto agridoce do primeiro amor, juntamente com as consequências que vêm de carona com o comportamento dos adultos em impedir este amor, seja por insegurança, seja por desconfiança de um conservadorismo ora compreensível, ora cruel.
Quando os outros escoteiros vão em busca de Sam (para, assim, o terem de volta como objeto de diversão em suas maldades), Suzy usa de sua violência e complica a vida de ambos. Na maior prova de que crianças podem, sim, trazer a maldade dentro de si, temos a infelicidade do casamento de Laura e Walt (que se referem um ao outro pela profissão que ocupam: advogados) contrabalançados pela doçura de Sharp (Willis, correto) e Ward (Norton, impecável como o escoteiro sênior, em toda sua caracterização de nerd almofadinha que amadureceu por fora e parece ter esquecido de crescer por dentro).
Com detalhes e maneirismos curiosos, temos Suzy e seus binóculos, Sam e seu cachimbo. Ela, de maquiagem e expressão facial dura, ele de óculos grandes, olhar doce e aparência que beira o feminino. A princípio, o casal não cria empatia em um primeiro instante, mas cativa o espectador no desenrolar da trama, que vai pouco a pouco esmiuçando personalidades solitárias, preteridas de um mundo que esqueceu as dores e delícias de ser criança.
E, sozinhos em meio a um mundo verde (o longa foi filmado nas paisagens naturais de Rhode Island), Sam, escoteiro primoroso, sobrevive com Suzy (embora conservem atitudes infantis rumo à vida adulta). Sozinhos, se encontram, sentem-se sendo o porto seguro um do outro, em uma rotina de pesca, descoberta de belos lugares, leitura ao redor da fogueira, conversas sobre a própria importância no mundo. Profundo e sincero, devo dizer.
O objetivo de Sam, na verdade, é chegar à Velha Colheita de Migração de Chickchaw (um nome feio, ambos concordam), mas de uma beleza imensurável e ótimo para acampar e se esconder do mundo real. Um mundo onde as crianças não são tão puras (talvez nem devam ser) e o furo nas orelhas de Suzy torna-se uma espécie de desvirginamento, em um misto de dor e prazer. E Anderson, em roteiro escrito a quatro mãos por ele e Roman Copolla (irmão de Sofia Copolla e filho do veterano Francis Ford Copolla), consegue criar passagens com maestria sem cair na vulgaridade ou no risível (como a cena do primeiro – e ousado – beijo entre o pequeno casal).
Com um olhar onírico, cínico e melancólico do amor (seja ele incompreendido, reprimido, idealizado, fraternal, concretizado e/ou sem um final feliz), “Moonrise Kingdom” ganha pela sinceridade em abordar o mundo adulto invadindo a infância, com uma ponta de esperança de o inverso também ser permitido e possível. Surge, também, para atrapalhar a jornada dos dois, a responsável pelo Serviço Social, Judy (Tilda Swinton, em papel de pouco destaque, mas vilanesco em sua afetação), que tem planos tenebrosos para o rejeitado Sam.
O filme, chegando em seu epílogo, ainda traz o comandante de outro grupo de escoteiros, Primo Ben (Jason Schwartzman, presença garantida nos filmes de Anderson e sobrinho de Francis Ford Copolla), além da inesperada aparição de Harvey Keitel, como o comandante dos escoteiros, Pierce. Coincidência ou não, é curioso o personagem de Schwartzman chamar-se Primo Ben, já que Roman Copolla (um dos roteiristas) e ele são realmente primos.
Com uma chegada ao epílogo retomando as fábulas lidas por Suzy durante as fugas (sim, há mais de uma), temos efeitos especiais considerados defeitos justamente para dar ainda maior ar infantil ao longa, em todo seu humor inocente e empático. Sem perder o ritmo (de diálogos lentos e alguns planos de silêncio puro), o filme ganha maior vertigem durante o furacão prestes a atingir o local.
Neste universo non sense, de direção de arte e figurinos bem acabados, “Moonrise Kingdom” surge para a filmografia de filmes infantis para gente grande (ou filmes adultos para gente pequena, como preferirem), como “Onde Vivem os Monstros” e “A Invenção de Hugo Cabret“, só para citar os mais recentes. Do ambiente fantástico, com planos de câmera que parecem quadros, já temos no prólogo uma inteligência pura, em que os personagens surgem rapidamente como se fossem instrumentos musicais, em uma analogia de sermos uma orquestra que funciona junta e em sintonia. A câmera, enquanto isso, esmiúça a casa por dentre as frestas, bem como crianças em sua curiosidade intrínseca.
E terminando ainda melhor do que começou, apesar de apressado, temos um epílogo com uma perseguição pelos telhados da cidade em preto e branco e em meio à tempestade, de forte impacto visual. E muitos de nós, alfabetizados com as histórias de amor com final feliz das fábulas de Walt Disney, observamos um amor real, com todo seu amargor e doçura compondo um filme sincero, poético e de pés infantis que oscilam entre o chão adulto e o ar da infância.