Famoso pelo engajamento sociopolítico, cineasta dirige filme sobre o impiedoso sistema militar durante a Guerra do Iraque.
Quando uma guerra é declarada, infelizmente os civis inocentes são os mais prejudicados. Sem armas e em meio aos conflitos, tais pessoas são alvo fácil na linha de fogo. Mulheres e crianças, inclusive; afinal, mães e filhos fazem o (im)possível para manterem-se unidos. Segundo estatísticas da organização Iraq Body Count, entre 2003 e 2011, a guerra no Iraque deixou um triste saldo de mortes: entre 109 e 119 mil.
O renomado cineasta britânico Ken Loach, vencedor da Palma de Ouro em Cannes por “Ventos da Liberdade” em 2006 e do Prêmio do Júri este ano pelo ainda inédito “The Angels’ Share” (com estreia prevista para dezembro), retorna aqui ao que sabe fazer de melhor em sua premiada filmografia: criar filmes politizados com forte carga emocional e personagens cuidadosamente bem construídos.
“Rota Irlandesa” chega com atraso ao Brasil (o filme é de 2010), mas sua atualidade é indiscutível, embora o conflito no Iraque tenha sido formalmente dado como encerrado pelos EUA no dia 15 de dezembro de 2011. Indicado à Palma de Ouro em 2010, o filme conta a história de Fergus (Mark Womack), militar irlandês que descobre a trágica morte do melhor amigo Frankie (John Bishop) na Rota Irlandesa que dá título ao filme (uma estrada que liga o aeroporto de Bagdá à Zona Verde, considerada a mais segura da região). Porém, a Rota em si é considerada a mais perigosa do mundo em seus 12 quilômetros de extensão.
Antes de morrer, Frankie pede que um celular seja entregue ao amigo. Lá, está um vídeo onde uma família (incluindo mulheres e crianças) são mortos em um ataque com a presença de Frankie em serviço. Fergus, claro, começa a ligar os pontos e percebe que o amigo pode ter sido assassinado, justamente por saber demais. Assim, começa uma busca incessante de Fergus pela verdade que envolve outros colegas de farda, como Nelson (Trevor Williams), Haynes (Jack Fortune), Walker (Geoff Bell) e Tommy (Russell Anderson). Além disso, uma misteriosa figura, denominada Mad Max, também pode estar por trás do (provável) assassinato de Frankie e não uma emboscada inimiga, conforme acreditava-se.
Escrito por Paul Laverty, colaborador usual de Loach, o longa é mais um belo engajamento do cineasta, que costura as relações de forma primorosa de como uma guerra afeta todos os lados. Tudo é dado a conta-gotas, onde as peças vão se encaixando minuciosamente. O envolvimento do explosivo Fergus e Rachel (Andrea Lowe), viúva de Frankie, também é outro ponto alto, em uma mistura de culpa, desejo incontrolável e carinho, intercalados em momentos certos.
Sem definir mocinhos e bandidos, o filme, muito bem editado, vai levando Fergus a bater de frente com um esquema perigosíssimo que pode dar cabo de sua vida, de Rachel e daqueles que o rodeiam. Assim, vai ligando os pontos por meio de entrevistas online com pessoas que estiveram – ou ainda estão – próximas dos personagens que mantiveram contato com Frank em seus últimos momentos. Com diversas reviravoltas, “Rota Irlandesa” prende a atenção do começo ao fim em uma obra sincera, brutal e recente na vergonhosa história mundial.
Emocionante sem abusar do melodrama, o filme traz impecáveis interpretações de todo o elenco, em especial Womack e Andrea, que interpretam Fergus e Rachel. Este é mais um trunfo de “Rota Irlandesa”, que não se restringe a abordar somente à questão da guerra e suas consequências sociopolíticas, mas se preocupa em lapidar cada personagem em suas características, fraquezas, feitos e personalidade como um todo.
Recheado de cenas memoráveis, o longa apresenta os traumas de uma guerra em seus envolvidos, seja nos soldados traumatizados ou nas famílias que perdem seus entes queridos. O temperamento agressivo e, ao mesmo tempo, protetor de Fergus é a maior prova disso, visto que ele esteve de ambos os lados. E cada trauma surge por meio de flashes (muitos deles, inclusive, com cenas reais de ataques no Iraque), o que dão ao filme o status de verossimilhança. Todos os defeitos e qualidades são expostos, sem dó nem piedade, doa a quem doer.
Com uma edição que nunca perde o ritmo e a força dramática em um thriller maduro, “Rota Irlandesa” ainda oferece cenas de pura delicadeza, como quando Rachel decide organizar os pertences do finado marido; ou quando Fergus ouve as mensagens deixadas por Frankie em sua secretária eletrônica (e que, para se afastar de tudo que lhe lembrava a guerra, ele não ouviu e nem respondeu a tempo). E como esquecer o arrombo ao caixão para uma última despedida ao melhor amigo, cuja amizade se enraizou ainda mais ao compartilharem uma guerra? Afinal, como ele diz a Rachel: “você conhecia o melhor lado de Frankie: sem uma arma na mão”. Acredito que muitos espectadores terão dificuldade em conter as lágrimas.
E nesta máquina onde “sobrevive aquele que atacar primeiro”, Fergus fica cego de ódio e indignação por estar de mão atadas contra um sistema impiedoso de poder, que inclui o DEI (Dispositivo Explosivo Improvisado), responsável pela morte de militares e civis que se tornam ameaças às Forças Armadas. Recheado de reviravoltas e dúvidas, que deixam o público com uma pulga atrás da orelha a cada nova descoberta (e a cada nova podridão escondida debaixo do tapete), o filme entrega um epílogo seco, silencioso e absolutamente compreensível.