Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 29 de setembro de 2012

Cosmópolis (2012): longa reflete sobre o modelo de vida capitalista

David Cronenberg dirige e roteiriza adaptação de livro, trazendo uma análise crítica sobre as relações humanas em meio ao caos socioeconômico.

Capital. Ego. De modo consideravelmente pessimista, mas não muito longe da realidade, podemos resumir nestas duas palavras o caráter da sociedade contemporânea. A lógica de mercado controla tudo e todos, funcionando quase como uma entidade independente dos seres humanos. Apenas quem dita ou segue as regras do jogo tem alguma chance de sobreviver. Mas pelo crescimento progressivo, veloz e desenfreado desta conjuntura, o colapso financeiro e psicológico é praticamente inevitável.

É por isso que os revoltosos de “Cosmópolis” querem “adiar o futuro”, usando a figura do rato para expressar sua repugnância e satirizar o modelo socioeconômico do novo milênio. Afinal de contas, “um rato se tornou a unidade monetária” – escreveu o poeta Zbigniew Herbert, citado no início da fita em questão. Enquanto isso, o empresário playboy Eric Packer, interpretado com parcimônia por Robert Pattinson, atravessa a cidade que agrega pessoas do mundo inteiro em busca de um corte de cabelo.

É interessante como o diretor David Cronenberg – que também adapta o roteiro a partir do livro homônimo do Don DeLillo – trabalha a geografia dos cenários de modo funcional para a narrativa. Enquanto o interior da limusine de Packer é espaçoso e confortável, as ruas parecem claustrofóbicas e caóticas. Desta maneira, invertem-se as características esperadas de cada local para construir a ideia de um protagonista inatingível e inabalável, mesmo quando seu carro é sacudido e pichado pelos manifestantes da rebelião.

Packer não é alheio à indignação social, ele simplesmente não se importa. Além do ímpeto de gastar dinheiro com absurdos desnecessários só para ter algo do qual sinta orgulho de ser dono, o bilionário parece se importar apenas em transar mais uma vez com sua esposa Elise, vivida por Sarah Gadon, cuja atuação pouco expressiva ilustra bem a distância sentimental entre os dois.

Os diálogos que Cronenberg escreve para o casal sugerem um conflito de personalidades, uma formalidade e um desconforto que fazem com que nunca vejamos Eric e Elise como marido e mulher, mas sim como esta sendo apenas um interesse casual daquele. Não é à toa que o protagonista nunca usa uma aliança, mas ela sim. Inclusive, Elise apresenta um costume sutil de esfregar o objeto com os dedos enquanto fala com seu esposo, revelando um desejo inconsciente de ter uma vida conjugal verdadeira.

Apesar de toda reserva e proteção de Packer, o mundo está inquieto demais para não afetá-lo mais cedo ou mais tarde. Seu arco caminha rumo à degradação física e mental, semelhante ao que podemos ver no longa norueguês “Headhunters”, sendo que mais sutil. O protagonista, longe de se tornar vítima das próprias atitudes – ou da falta delas –, exibe um desejo imenso de se deixar levar por novas sensações – “mostre-me algo que eu não conheço”, diz o personagem. Seu vazio é tão grande que ele não se enxerga como culpado nem cúmplice do sistema, tirando proveito da desestruturação social até o último instante.

A fotografia de Peter Suschitzky é a marca principal do longa. Valorizando as cores e formando enquadramentos e ângulos de câmera pouco convencionais e com muita profundidade, Suschitzky confere uma identidade visual deslumbrante à obra. Isto pode ser observado principalmente nas cenas no interior da limusine e quando Packer e Elise estão em uma lanchonete.

Uma atmosfera levemente futurista é percebida na maior parte do filme, sendo substituída no terceiro ato por algo mais cru e próximo da realidade social de outros que não o protagonista, representando uma integração deste com o meio, ainda que de modo bastante conflituoso. Esta dualidade é evidenciada também pela direção de arte de Joshu de Cartier e pelo design de produção de Arvinder Grewal, que trabalham os cenários e os objetos como extensões dos personagens.

As conversas entre Packer e aqueles que entram e saem de sua limusine constantemente – ilustrando a fragmentação das relações e o quão descartáveis são estas pessoas para Eric – podem parecer enigmáticas demais, desnecessárias e até enfadonhas algumas vezes. Fugindo cuidadosamente do didatismo, Cronenberg acaba dificultando demais o acesso ao que deixa implícito nos diálogos, o que pode gerar confusão para parte do público.

Desse modo, “Cosmópolis” se mostra como um filme que requer bastante atenção do espectador para suas sutilezas e paciência para os longos diálogos, mas sem deixar de ser totalmente gráfico quando necessário. Como o trailer já antecipa, este é um filme sobre nosso novo milênio, onde o drama humano, em vez de ser esmagado pelas superficialidades impostas pelo atual modelo de vida, explode e escancara toda a subjetividade dos indivíduos, que a esta altura não estão nem um pouco saudáveis.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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