Premiado no Festival de Brasília, filme de Tata Amaral traz retrato intimista da história recente do Brasil.
Analisar um período negro da história da humanidade é sempre uma decisão arriscada, visto o perigo de cair no melodrama barato ou em um didatismo morno que incomodará aqueles que já conhecem o tema. A diretora Tata Amaral conseguiu se desprender das amarras clichês do Regime Militar brasileiro e realizou um filme contundente do período, que assombrou o País por longos 21 anos.
Em “Hoje”, a cineasta paulistana opta por focar em dois personagens – entre tantos – que protagonizaram a ainda recente fase do anacrônico “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. Na trama, situada no final dos anos 90, acompanhamos Vera (Denise Fraga), de mudança para o recém comprado apartamento no centro de São Paulo. Com a chegada dos dois carregadores (Pedro Abhull e João Baldasserini), ela recebe a visita do misterioso Luiz (o ator uruguaio César Troncoso).
Enquanto se preocupa com a chegada de suas coisas no velho apartamento, Vera tem de dividir a atenção entre os dois funcionários, a pedante síndica do prédio (Lorena Lobato) e Luiz, que se torna uma presença incômoda e, ao mesmo tempo, nostálgica para a personagem. Em doses homeopáticas, a cortina do passado de ambos como ativistas nos anos 70 revela uma história carregada de amor, política, culpa e dor.
Baseado no livro “Prova Contrária”, de Fernando Bonassi – que teve outra obra sua, “Um Céu de Estrelas” (1996), transposta para as telas pela própria cineasta e também premiado em Brasília nas categorias Direção e Roteiro – “Hoje” oferece um novo prisma diante de uma história diversas vezes revisitada pelo cinema nacional.
Neste ambiente claustrofóbico do apartamento, onde se passa toda a trama, o filme se desenrola com um clima denso e constante, que prende a atenção do público, até unir as peças do quebra-cabeça que compõem o passado de Vera e Luiz. O reencontro dos dois se inicia com o desconforto repleto de silêncios e lapsos de conversas triviais, até desembocar na raiz da questão que os conecta.
Intimista, com um ritmo lento e incômodo, “Hoje” preza por desvendar formas distintas de lidar com a memória. Enquanto Vera, aparentemente, fez questão de tentar deixar seu passado para trás, Luiz revive os macabros momentos de militância, arrastando a personagem junto consigo.
E entre portas, janelas e paredes do espaço, que dividem passado e futuro, o longa expõe o lado mais humano da dupla, como a solidão desenfreada que acomete Vera, seja como forma de vingança ou expiação ou, simplesmente, como válvula de escapa diante do sentimento de nada, em que sentir dor é, muitas vezes, a única saída de uma existência vazia. Nesta espécie de cárcere privado do apartamento, Vera e Luiz redesenham sua própria história, em um misto de realidade e ficção se fundem em um enigmático jogo de assuntos pendentes e/ou perdidos.
Propositalmente, “Hoje” tem suas questões cruciais dos personagens interrompidas, dosando a tensão necessária em seus 90 minutos e trabalhando bem as questões dúbias que permeiam o encontro. Favorecido pelo uso de sobreposição de imagens, videocenários e um ótimo uso de luzes – especialmente com relação aos olhos de Vera –, o longa inclui elementos teatrais em meio às divagações dos diálogos, entre uma tênua linha de passado e presente, onde o título do filme será essencial para o encerramento de um ciclo na história, tanto dos personagens, como da trajetória do Brasil democrático.
Com uma interpretação louvável de Denise Fraga (que lhe rendeu o Candango de Melhor Atriz no Festival de Brasília), é marcante a cena em que, em um único take, descreve os horrores da tortura que sofreu quando em poder dos militares. A atriz, que já havia interpretado uma mulher assombrada pelos terrores do Regime Militar na série “Queridos Amigos”, traz, de maneira menos traumática, as feridas deixadas pelos anos de chumbo.
Troncoso, com seu semblante ora sério, ora triste, oferece uma interpretação correta, com uma química que funciona com a atriz. E o resultado de “Hoje”, mais do que se esforçar para fazer o público chorar, se preocupa em instigar a reflexão e coloca o público no lugar de ambos, de uma realidade que fez parte da vida de muitos latino-americanos. Afinal, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Cuba, Equador e tantos outros países estiveram à mercê do totalitarismo, incluindo o próprio ator uruguaio, cujo país esteve, entre 1973 e 1985, sob o regime civil-militar instaurado pelo então presidente Juan María Bordaberry e as Forças Armadas.
Tata Amaral, em seu primeiro trabalho com sua produtora Tangerina Entretenimento, merece todos os louros pelo trabalho que, além de Atriz, conquistou em Brasília os prêmios de Melhor Filme, Roteiro, Direção de Arte e Fotografia. Com uma filmografia diversificada, cujo mais conhecido trabalho é “Antônia – O Filme”, a cineasta entrega um filme que, apesar de desembocar em um epílogo que destoa do conjunto da obra, é um belo retrato da tênue linha que nos separa entre o que fomos, o que somos e o que nos tornaremos.
Esse filme fez parte da programação do 7º Festival de Cinema Latino-Americano de SP, em julho de 2012.