Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 22 de julho de 2012

Valente (2012): animação nos apresenta à primeira princesa da Pixar

Pela primeira vez adentrando neste território tão particular de sua companhia-mãe, o estúdio nos apresenta a uma corajosa princesa ruiva em uma jornada para trilhar o seu próprio destino.

Desde que a Pixar começou a sua parceria com a Disney, há 18 anos e 12 filmes atrás, o estúdio se especializou em animar o que outrora era considerado inanimado. Ela jamais se aventurou um território narrativo já explorado a exaustão pela Casa do Mickey: o mundo das princesas. Isso era o caso até a chegada da cineasta Brenda Chapman (do ótimo “O Príncipe do Egito”) à companhia que, ao lado do seu colega diretor Mark Andrews, deu vida à brava jovem escocesa Merida, protagonista deste “Valente”.

A despeito de Chapman ter saído do projeto antes de sua conclusão, devido às famigeradas “diferenças criativas”, Andrews prosseguiu com o projeto que havia concebido com ela, desbravando uma temática “nova” para o estúdio e dando à Pixar seu primeiro longa de época e, de quebra, sua primeira produção protagonizada por uma personagem feminina.

Considerando os problemas de bastidores, a quebra de tantos paradigmas e a derrapada dada pelo pessoal da luminária ano passado com “Carros 2”, não se pode dizer que inexistiam reservas quanto à iniciativa. Para alegria dos fãs da empresa, ainda bem que tais receios  não se confirmaram, com Merida conseguindo trazer de volta um pouco do brilho ao selo Luxo Jr. de qualidade após seu último lançamento.

Como a referência óbvia do título a “Coração Valente” já entrega, a trama desta produção se passa em meio a Escócia medieval. Merida é filha do Rei Fergus e da Rainha Elinor. No entanto, a jovem herdou mais do que deveria de seu pai, sendo tão teimosa, temperamental  e destemida quanto ele, algo que a proximidade visual dos dois já entrega.

Essa energia de Merida e sua vontade de tomar as rédeas de seu próprio destino a colocam constantemente em rota de colisão com sua mãe, que está ansiosa que a primogênita assuma suas obrigações reais e seja desposada pelo herdeiro de um dos três outros clãs, Dingwall, MacGuffin e MacIntosh (MacGuffin faz referência a um famoso recurso narrativo e MacIntosh é claramente uma homenagem a Steve Jobs – a quem, aliás, o filme é dedicado).

Após Merida desafiar sua mãe de um modo que pode levar os quatro clãs a uma guerra, ela recorre a uma bruxa para fazer valer sua vontade, o que acarreta em consequências gravíssimas para a família real, tendo a jovem de correr contra o tempo para salvar o reino e seus entes queridos, colocados em perigo graças à sua imaturidade e egoísmo.

Duas ausências tornam “Valente” um exemplar atípico dentre os filmes com princesas da Disney. Não existe na história um interesse romântico ou um antagonista para que a mocinha combata. O mais próximo de um “vilão” que a fita possui é uma bruxa atrapalhada, cujas ações lesivas não são movidas por maldade ou ganância, mas por distração. Até mesmo o “urso-demônio” Mordu, que fere o Rei no começo da fita e retorna posteriormente, está mais para uma incontrolável força da natureza, jamais um elemento maligno.

Tais características, tão típicas de animações do cineasta japonês Hayao Miyazaki, acabam por afastar eventuais comparações que poderiam ser feitas com “A Pequena Sereia”. Há uma semelhança sim entre os dois filmes, que é a dificuldade de comunicação entre a princesa e um de seus pais que desencadeia o desastre que dá ensejo à trama.

No caso de Merida, temos o relacionamento difícil entre ela e sua mãe, ressaltado por meio de uma belíssima cena na qual as duas ensaiam o que falar o que sentem uma para outra, mas jamais conseguem travar tal diálogo, sem contar o desastroso embate entre elas, que acaba gerando um tenso rompimento entre mãe e filha.

Desde o primeiro frame, Merida é vista como possuidora de uma personalidade forte, embora ainda imatura, se mostrando impossível de ser contida, conforme os rasgos que acabam por marcar seu figurino formal atestam. Ela encara as consequências desastrosas de seus atos de frente, jamais sendo uma garota que espera por um salvador.

Ao mesmo tempo, também não é olvidado que se trata de uma adolescente, tendo uma fragilidade inerente à personagem que apenas acentua sua coragem nascente. Todos esses fatores trabalham para reforçar o caráter de Merida e seu amadurecimento, mesmo que ela não seja a única personagem a crescer e a chegar ao final da projeção mudada pelos eventos que transcorreram, algo que acaba sendo marretado na cabeça do espectador de maneira pouco sutil, provável efeito colateral de um roteiro muito mexido e escrito a oito mãos.

O sidekick animal, algo de praxe nesse gênero, encontra-se presente aqui também, mas de um modo diferente, deveras imaginativo e emocionante. Ainda temos um bom – e econômico – uso dos inevitáveis alívios cômicos (no caso, os filhos dos lordes escoceses e os irmãos de Merida), com estes jamais surgindo de maneira intrusiva na trama principal. A trilha sonora de Patrick Doyle ajuda a evocar o clima da história de maneira perfeita, embora lance mão de canções para explicitar de maneira desnecessária os sentimentos de Merida emdois momentos da projeção.

A despeito do cuidado e perfeccionismo típicos da Pixar na reprodução dos cenários escoceses no decorrer da produção, principalmente no castelo, não há uma grande variedade de ambientes no decorrer da fita, tentando se disfarçar tal problema com variações na fotografia, mas trata-se de um deslize que empobrece um pouco a direção de arte.

Mesmo assim, considerando o fantástico design de produção e de personagens (os cachos de Merida, tão revoltos quanto ela própria, são um show à parte), não há muito do que se reclamar na parte visual. Algumas tomadas desenvolvidas por Chapman e Andrews são de tirar o fôlego, como a intervenção de Merida no desafio de seus pretendentes e o confronto desta com o urso Mordu. O 3D da película, apesar de um ou dois bons momentos, jamais se torna relevante para a experiência cinematográfica, podendo ser dispensado sem maiores cerimônias.

Contando com uma protagonista extremamente interessante, “Valente” não é uma obra-prima como alguns longas que nos foram entregues pela Pixar, mas mostra que o estúdio pode sim dar o seu tempero especial a um gênero clássico da animação sem esquecer de sua identidade.

P.S.: Por melhor que a dublagem esteja, é uma pena que tenhamos uma virtual ausência de cópias legendadas, privando o público do tão marcante sotaque escocês, característica tão particular dessa cultura que tem uma importância tão grande para a história que está sendo contada.

P.P.S.: Interessante notar que “La Luna”, magnífico curta que antecede “Valente”, também lide com filhos encontrando seus próprios caminhos em relação aos pais, gerando uma ótima rima entre as duas obras.

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Thiago Siqueira
 é crítico de cinema do CCR e participante fixo do RapaduraCast. Advogado por profissão e cinéfilo por natureza, é membro do CCR desde 2007. Formou-se em cursos de Crítica Cinematográfica e História e Estética do Cinema.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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