Competência e complexidade dividem espaço no longa vencedor do Leão de Ouro em Veneza
Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza 2011, dizer que “Fausto” não é um filme fácil de digerir soaria como eufemismo. A história, inspirada na lenda alemã popularizada entre os séculos XV e XVI, ganhou mais força com o poema trágico do escritor Johann Wolfgang von Goethe, publicado em 1808, e diversas adaptações para o cinema (especialmente o clássico homônimo dirigido por F.W. Murnau em 1926). O diretor russo Aleksandr Sokurov, mais conhecido do público pelo belo trabalho de um único take em “Arca Russa”, revisita a saga de um homem que vende sua alma ao demônio em troca de sabedoria.
Acompanhamos o médico Heinrich Faust (Johannes Zeiler), ávido por conhecimento nas esferas da medicina e da filosofia, chegando ao limite de sua humanidade na qual não consegue compreender os mistérios do universo que o atormentam. Durante a dissecação de um cadáver, procura o local onde estaria localizada a alma e, a partir daí, se embrenha em um incansável esforço de superar a si mesmo diante da insatisfação em seu próprio entrave intelectual.
Após pedir, em vão, ajuda ao pai (Sigurður Skúlason), um médico com técnicas para lá de ortodoxas, Fausto parte em busca de respostas para suas angústias por meio do questionamento da função de tudo que é vivo e etéreo. E nesta exposição do lado primitivo da natureza humana, coloca o espectador diante de um mundo sórdido, violento, tomado pelas dores excruciantes e pela fome generalizada.
Da escuridão de seu âmago (sub)existencial, Fausto passeia pela cidade tomada pela insanidade e o que restou de normalidade em uma terra sem lei. E seguindo esta linha narrativa, Sokurov cria um universo desprezível, claustrofóbico, onde qualquer resquício de vida foi reduzido a pó, com personagens subumanos dominados por seus instintos mais selvagens, como desejo e cobiça.
Eis que, durante sua peregrinação, Fausto encontra em uma casa de penhores o agiota Maurício, que induz o médico a segui-lo. Minuciosamente bem interpretado pelo ator Anton Adasinsky, o personagem é a releitura do demônio Mefistófeles, figura presente em todas as versões da obra alemã. Com a promessa de oferecer sabedoria e juventude ao médico, o agiota o leva até a gruta das lavadeiras e inicia, ali, o processo de encanto que levará Fausto à ruína.
Com o surgimento da jovem lavadeira Margarete (Isolda Dychauk), Fausto deixa-se levar pelo prazer e ambição e entrega-se de corpo e alma – literalmente – ao agiota, um ser asqueroso em sua aparência física e crueldade, que usará da lascívia como a grande arma para destruí-lo. Margarete, então, passa a ser a moeda cobrada por Maurício em troca do pacto assinado com sangue, em uma clara metáfora da desenfreada ganância da humanidade pelas posses desde que o mundo é mundo.
Com um roteiro – em alemão – carregado, “Fausto” lança perguntas e entrega doses homeopáticas de respostas ao redor da fé, da filosofia e da função humana no (e com o) mundo por meio da corrupção, não somente envolvendo dinheiro, mas também reconhecimento social e intelectual. Nada mais propício em se tratando de Sokurov no encerramento de sua tetralogia do poder, precedida por “Moloch” (sobre Lênin), “Taurus” (sobre Adolf Hitler) e “O Sol” (que se refere ao imperador japonês Hirohito).
Para retratar esse universo assombroso, Sokurov se arma de artifícios estéticos e cinematográficos que não se perdem durante as pouco mais de duas horas de projeção. Da trilha sonora densa a planos que alternam entre abertos, câmera na mão e distorções de imagens para expor a tênue linha entre realidade e fantasia, “Fausto” é, ainda, um competente exercício visual deveras inquietante.
Bruno Delbonnel (responsável pela fotografia de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, “Harry Potter e o Enigma do Príncipe” e do mais recente filme de Tim Burton, “Sombras da Noite”) oferece um trabalho competente que casa perfeitamente com o tom sóbrio e trágico da obra. Das cores lavadas em tons pastéis ao uso de sombras que reforçam ainda mais a angústia do universo de trevas de Fausto, é impossível não se impressionar com o que se vê na tela.
O roteiro, que repete tantas vezes a questão da fome e da podridão do universo, por sorte não chega a se perder e ainda se reforça pelos breves relatos dos pensamentos de Fausto, um homem dividido na dúbia relação entre a bondade e a maldade, constantemente testados pelo desejo inflamável. Ou seja, um homem que queria encontrar a alma e acabou, ironicamente, por perdê-la.