Com edição impecável, documentário presta homenagem à altura ao grupo liderado por Freddie Mercury
Para começar este texto, peço licença ao leitor para uma confissão: cresci ouvindo muitas pérolas da música graças aos meus pais. Além de artistas brasileiros incríveis, na estante alguns nomes ganhavam a vitrola em alto e bom som. Eu, ainda sem entender inglês, balbuciava canções de nomes como ABBA, Supertramp, Elvis Presley, Beatles, Carpenters e, como não poderia deixar de ser, Queen.
Portanto, com a notícia que o Festival In-Edit, que chega à sua 4ª edição em 2012, ia exibir o documentário “Queen – Days of Our Lives” aqui na cinzenta São Paulo, minhas expectativas atingiram níveis altíssimos. Sensação arriscada visto que, na maioria das vezes, pode-se levar um tombo feio por não supri-las. Neste caso, ledo engano. O documentário feito para a TV em 2011 conta com a direção de Matt O’Casey, especialista no gênero que já contou na telona a história de artistas como Blondie, Fleetwood Mac e Beach Boys. E encanta.
Tietagem à parte, o longa (dividido em duas partes de 60 minutos), é um deleite audiovisual aos fãs (e não fãs) do quarteto britânico que conquistou o mundo nos anos 70 e 80 e, até hoje, não só continua encantando como conquista novos seguidores. Embora seja categorizado como um grupo de rock, o Queen nunca se restringiu a um padrão musical, passeando por acordes ligados ao funk e o pop, além de abusar do poderio lírico do vocalista Freddie Mercury.
Costurando, em ordem cronológica, o lançamento dos álbuns com incontáveis curiosidades da banda, acompanhamos o repentino sucesso que, em apenas três anos de vida, já havia desbancado o icônico David Bowie (então em seu sétimo álbum) da parada Top of The Pops.
Dirigido de forma convencional, com imagens raras (e muitas conhecidas) de arquivo, recortes de notícias da época e matérias de TV (incluindo a interessante cena em que assistem a si mesmos tocando na TV), “Queen – Days of Our Lives” tem seu mérito de registro magistral graças à edição, um mix caleidoscópico de gravações em estúdio da época (alternando com a versão final das canções), colocando o espectador dentro da casa dos integrantes, dos bastidores, camarins, tanto em arquivos desgastados pelo tempo como em imagens que parecem ter sido feitas recentemente.
E entre as subidas e descidas na carreira do grupo por questões financeiras, imprensa marrom e o chavão “o céu é o limite”, o documentário traz depoimentos do guitarrista Brian May, do baterista Roger Taylor, além do hilário jornalista Harvey Kubernick, do produtor Reinhold Mack (que trabalhou com a banda a partir de 1980) e John Reid, empresário que salvou o Queen da exploração da gravadora, só para citar alguns. Já John Deacon, que abandonou a banda em 1997, tem sua ausência nas entrevistas compensada por cooperações inestimáveis, como seus riffs inconfundíveis para canções como “Another One Bites the Dust”, além de acertar como autor desta, de “I Want to Break Free” e “You´re My Best Friend”.
Porém, mesmo com um trio tão talentoso e afinado, não há como negar que a alma do Queen era Freddie Mercury. E o documentário não se inibe em mostrar sua genialidade, um ser humano sem limites (e vítima dos próprios excessos) e que levava todo seu carisma e sensualidade para as apresentações, com uma presença de palco que enlouquecia o público. O documentário comprova isso, com sua obsessão em estreitar os laços dos gêneros musicais, suas apresentações com collant de balé ou a genialidade de compor uma canção durante o banho (caso da nostálgica “Crazy Little Thing Called Love”).
“Queen – Days of Our Lives” nos traz momentos inesquecíveis, como a gravação de “Under Pressure” (com Bowie e Freddie cantando separadamente o que lhes vinha à cabeça após o inesperado riff de John Deacon); a improvisada situação de batidas com os pés em tábuas que deu origem a “We Will Rock You”; a ideia do hino “Bohemian Rhapsody”, que une três músicas completamente diferentes e chegou a ser considerada uma ousadia fadada ao fracasso à época; e, especialmente aos fãs brasileiros, é impossível conter a emoção diante do primeiro show no Brasil, em 1981, no Estádio do Morumbi, para uma multidão de 200 mil pessoas.
Focando no trabalho do grupo que se tornou um dos mais queridos do público mundial e um dos pioneiros do videoclipe, o documentário mostra o vigor que o Queen manteve diante do nascimento do punk no final dos anos 70, de envolvimentos profissionais arriscados (como Paul Prenter, o assessor pessoal de Freddie, que queria mudar a identidade do quarteto) e o desejo do músico por uma carreira solo.
Porém, quando a banda estava na iminência da separação, o maior choque acontece diante da notícia da AIDS, que acomete Freddie Mercury. Sem explorar a sua doença (nem a sua homossexualidade, que já passava por uma rotina de sexo casual desenfreada há anos), o documentário mostra que é possível fazer um trabalho de qualidade pontuando, sem sensacionalismo ou drama apelativo, a vida pessoal de seus artistas. Assim, dá as mãos para o bom senso e toma o caminho da arte, mostrando um artista incansável diante da música até o último momento. Imperdível.