Não deixa de ser uma pena que um filme com tantos bons elementos e um primeiro ato tão promissor acabe caíndo na vala comum do "mais um".
Acho que nunca a cultura pop viu tantas versões de Branca de Neve como em 2012, com a personagem marcando presença em livros, quadrinhos, seriados e filmes. “Branca de Neve e o Caçador” é a segunda adaptação deste conto de fadas a ganhar as telonas neste ano, tendo um tom bastante diferente daquele adotado na quase-comédia semi-bollywoodiana “Espelho, Espelho Meu”.
Esta mais recente interpretação do conto dos irmãos Grimm agrega um elemento mais sombrio à narrativa, dando inclusive um melhor foco ao à antagonista, a rainha má, e obviamente ao caçador. No entanto, o roteiro escrito à seis mãos pelo estreante Evan Daugherty, John Lee Hancock (“Um Sonho Possível”) e Hossein Amini (“Drive”) acaba sofrendo pela multidão de vozes em sua confecção, dentre elas as dos produtores.
A trama mostra a jovem princesa Branca de Neve (Kristen Stewart) que teve seu reino tomado pela cruel Rainha Ravenna (Charlize Theron), uma bruxa com poderes incríveis que seduziu e matou o Rei (Noah Huntley). Aprisionada por quase uma década, Branca de Neve escapa das garras da rainha, que deseja consumir seu coração para alcançar a imortalidade e juventude eterna. Ravenna então envia um cínico Caçador (Chris Hemsworth) para trazê-la de volta, mas este acaba se voltando contra a monarca após conhecer sua presa, o que coloca os dois na mira da vilã.
O diretor Rupert Sanders, que aqui faz o seu debut no comando de um longa, buscou influências em quase todas as versões da história para compor esta nova Branca de Neve. Um exemplo disso é a assustadora cena da Floresta das Trevas, que ganhou uma versão live action quase tão perturbadora quanto a feita no início do século passado por Walt Disney.
A seriedade do primeiro ato da fita impressiona, bem como a eficiente direção de arte, que nos apresenta a duas versões bastante diferentes e igualmente eficientes do reino da princesa. O uso da magia de Ravenna neste terço inicial, bem como o surgimento de criaturas mitológicas como trolls é bastante orgânico e faz sentido dentro da lógica proposta pela narrativa. A batalha que vemos durante o prólogo também é bastante eficiente, encontrando até mesmo uma ótima saída para não mostrar sangue e manter a classificação indictiva na faixa desejada.
Também agrada o trabalho de Charlize Theron na composição da Rainha, cujo sofrimento pretérito indicado por esta em flashbacks e em uma expressão sofrida acaba fazendo que sua obsessão por controle e beleza seja explicada, mas nunca justificada, tornando-a uma vilã mais tridimensional, principalmente em suas cenas com seu patético irmão, Finn (Sam Spruell). A composição visual dela também está perfeita, com não apenas a beleza gélida Theron se encaixando perfeitamente ali, mas o trabalho de direção de arte e figurino contribuindo para a composição da Rainha, até nos mínimos detalhes, como nas discretas runas presentes no espelho.
O tratamento dispensado ao Caçador sem nome de Hemsworth também ajuda a fortalecer o personagem, dando-lhe uma motivação clara para inicialmente aceitar a missão que lhe fora imposta por sua monarca e para seu relacionamento posterior com Branca de Neve. O próprio carisma e força de Hemsworth ajudam a mostrar como o Caçador lidou com uma perda terrível e como isto o afetou, criando uma bela história de fundo.
É uma pena que o roteiro não tenha se dedicado tanto para a outra personagem-título. A Branca de Neve de Kristen Stewart, sem trocadilho, passa em brancas nuvens durante as mais de duas horas de projeção, mas não por culpa da atriz, que até se esforça. O problema é que não sentimos um arco emocional envolvendo a heroína em momento algum, com nem mesmo os quase dez anos de reclusão injusta que esta sofreu parecendo ter lhe causado muito impacto, com sua transição de princesa cativa para guerreira soando forçada, culminando no discurso de batalha mais equivocado desde “Rei Arthur”.
Também não ajuda o fato do roteiro empurrar pela goela do público um triângulo amoroso entre ela, o caçador e um amigo de infância de Branca, o nobre William, vivido por Sam Clalfin, que aqui faz as vezes de “príncipe encantado” e surge na tela com tanta vivacidade quanto um peso de papel. O vai-não-vai entre os três é claramente uma tentativa de atrair a audiência que fez da franquia “Crepúsculo” um sucesso de bilheteria, mas resulta apenas em um plot mal-resolvido e chega até mesmo a atrapalhar a boa química entre Hemsworth e Stewart.
Há ainda uma tentativa de transformar Branca de Neve em messias, através de uma profecia vinda Deus sabe de onde. O Destino Manifesto da protagonista fragiliza o roteiro, que usa esse artifício para apresentar criaturas mágicas que não desempenham função nenhuma na história, destruindo o uso verossímil dos elementos fantásticos naquele universo que vinha sendo mantido até aquele ponto. Temos uma determinada cena onde Branca é apresentada como “A Escolhida” que serve apenas para que o filme se aproprie indevidamente de alguns elementos visuais de “Princesa Mononoke”, o tirando alguns pontos de um design de produção que vinha muito bem até ali.
A tentativa de transformar a heroína em uma espécie de escolhida da natureza acaba enrolando por demais o meio de campo do filme, até porque neste mesmo ponto – tardio – da produção surgem os sete anões, inicialmente bem apresentados, mas que acabam descambando para se tornarem meros alívios cômicos. Por mais que eu aprecie os atores que vivem os anões, como Bob Hoskins, Toby Jones, Ian McShane, Ray Winstone e Nick Frost, o fato é que eles estão deslocados ali e o grupo não precisava aparecer em um filme que já estava abarrotado.
Os problemas de “Branca de Neve e o Caçador” não o tornam uma experiência cinematográfica ruim, mas levam à mediocridade uma película que tinha potencial para ser algo bem melhor, principalmente quando se concentra em seus personagens e tenta parar de agradar convenções.
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Thiago Siqueira é crítico de cinema do CCR e participante fixo do RapaduraCast. Advogado por profissão e cinéfilo por natureza, é membro do CCR desde 2007. Formou-se em cursos de Crítica Cinematográfica e História e Estética do Cinema.