Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 02 de junho de 2012

Cego Aderaldo – O Cantador e o Mito: doc revive a história do herói nacional

Contando com imaginação e carinho pelo homenageado, este belo documentário nos mostra como, das situações mais adversas possíveis, pode surgir um homem com um talento inimaginável.

Em 1878, no Crato, nasceu Aderaldo Ferreira de Araújo, o homem que viria a ser conhecido posteriormente como Cego Aderaldo. Criado na cidade de Quixadá, Aderaldo sofreu diversas provações em sua vida, perdendo o pai e sua visão ainda na juventude. Isso, no entanto, foi só o começo de sua história, que culmina em sua consagração como um dos baluartes da cultura do nordeste brasileiro.

A fascinante história do Cego Aderaldo, grande expoente da cantoria poética nordestina na primeira metade do século XX, é exposta para o público pela ótica peculiar do cineasta cearense Rosemberg Cariry neste documentário “Cego Aderaldo – O Cantador e o Mito”.

Acometido pela cegueira e pobreza durante sua juventude, Aderaldo não deixou que essa triste condição o abalasse. De uma vida repleta de provações, surgiu um grande campeão da arte, capaz de transformar seus dissabores e alegrias em uma inspiradora poesia. A importância e a influência de suas obras era tal que, quando em idade avançada, suas viagens às capitais eram manchetes de jornais.

Para compor o longa, Cariry tinha de vencer um obstáculo complicado: a parca quantidade de materiais de arquivo sobre Aderaldo. Muitas das informações sobre ele sobreviveram esses quase cem anos apenas por meio de fontes orais, misturando um pouco fato e lenda. O diretor, então, buscou certa inspiração no biografado e usou sua imaginação para sair do proverbial escuro.

Somos então levados para uma viagem de 78 minutos pela vida pessoal e artística de Aderaldo, isso por meio de uma inteligente mistura de raríssimos materiais de arquivo, entrevistas com aqueles que foram tocados pelo poeta, breves trechos docudramáticos e utilização lírica de filmes clássicos de diretores como Luís Buñuel e F.W. Murnau.

A utilização de momentos de fitas como “Um Cão Andaluz” e “Fausto”, embora cause certo estranhamento inicial, logo este se justifica. Afinal, Aderaldo não apenas desempenhou papel significante para o reconhecimento e a evolução das canções e poesias típicas do nordeste, mas também para a expansão do cinema pelo interior da região, levando salas de projeções itinerantes e atuando como explicador, sendo, apesar de sua deficiência, um entusiasta da então nova mídia.

A despeito de ter caído em um relativo esquecimento junto ao público dos grandes centros urbanos, o Cego Aderaldo permanece como um dos grandes heróis do nordeste brasileiro, formando um verdadeiro triunvirato ao lado de nomes como Padre Cícero e Lampião, com quem teve relações de amizade e protagonizam um dos momentos mais marcantes da película.

As entrevistas não só conseguem expor muito bem quão influente o homenageado é, como também nos mostram um pouco de sua privacidade. Desnecessário falar da trilha sonora que traz os versos e desafios de Aderaldo muitíssimo bem interpretados, para o deleite de novos e antigos admiradores.

Nada mais justo que o cinema prestar a devida homenagem a este verdadeiro titã da cultura, cuja generosidade o fez adotar 26 filhos e partilhar com o mundo seu talento. Sua história sobreviveu e ganhou contornos de mito graças à tradição dos contos orais e dos cordéis, tendo este ótimo filme a resgatado para uma nova geração.

“Meus prantos se enxugaram.
Das lágrimas que corriam
Chegou-me a poesia
E eu me consolei.
Sem pai, sem mãe, sem Vista,
Meus olhos se apagaram;
Tristonhos se fecharam
E eu nunca mais chorei”
(Trecho de “As Três Lágrimas”, de Cego Aderaldo)

Esse filme fez parte da programação do 22º Cine Ceará, em junho de 2012.

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Thiago Siqueira
 é crítico de cinema do CCR e participante fixo do RapaduraCast. Advogado por profissão e cinéfilo por natureza, é membro do CCR desde 2007. Formou-se em cursos de Crítica Cinematográfica e História e Estética do Cinema.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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