Uma mensagem política bastante forte se esconde neste que está sendo mal promovido como um blockbuster juvenil. Some-se isso a ótimas interpretações e uma direção competente por parte de Gary Ross e temos uma interessante experiência.
Uma das formas mais eficazes de um governo ter uma população sob seu jugo é por meio do somatório de intimidação, alienação, pobreza e ignorância. Mesmo com toda uma roupagem de blockbuster, “Jogos Vorazes” tem em seu fundo uma mensagem bastante política. Baseado no livro homônimo de Suzanne Collins, o longa possui sim ação, aventura e romance, mas também lida com temas fortes de uma forma inteligente.
Esta produção, dirigida e co-roteirizada por Gary Ross (“Pleanstville – A Vida em Preto e Branco”), nos apresenta ao mundo distópico de Panem, uma América do Norte pós-apocalíptica dividida em 12 distritos dominados por uma opressora e opulenta Capital. Como penitência por perderem um levante contra seus líderes, os distritos devem oferecer anualmente uma jovem e um jovem, entre 12 e 18 anos de idade, para competirem no reality show mortal que dá título à fita, em uma luta pela sobrevivência na qual apenas um sairá vivo.
A heroína aqui é Katniss Everdeen, garota do paupérrimo Distrito 12 que se oferece como tributo após sua irmã mais nova ter sido sorteada para participar dos jogos. A escolha de Jennifer Lawrence para o papel da protagonista fora deveras acertada, não só pelo inquestionável talento da atriz, mas também por seu retrospecto.
As realidades de Katniss e de Ree, personagem de “O Inverno da Alma” que rendeu a Lawrence uma indicação ao Oscar, são deveras similares, ambas sendo moças que se veem obrigadas a passar por jornadas perigosíssimas para manter o que restou de seus lares quebrados. Interessante notar que o próprio filme parece reconhecer essa semelhança, com a trilha sonora da fita tendo uma influência do sul dos Estados Unidos, região onde “O Inverno da Alma” se passa.
Há um ótimo diálogo de Katniss que mostra sua desesperança em ver tempos melhores, no qual ela revela que jamais quer ter filhos, justamente para não submetê-los a essa guerra diária por subsistência que lhe fora imposta e ao medo constante de ser escolhida para os Jogos.
Lawrence faz um trabalho fantástico compondo Katniss, inclusive em sua falsa aceitação em acatar o sistema para conquistar a simpatia do público, algo fundamental para sua sobrevivência, haja vista que patrocinadores podem lhe enviar itens indispensáveis para sua sobrevivência no decorrer da competição.
Acertadamente, os trinta primeiros minutos da projeção são utilizados para nos mostrar os contrastes entre o dia-a-dia de Katniss no Distrito 12 e as riquezas tecnológicas da Capital, povoada por uma elite ridiculamente superficial, extravagante e governada por homens cujo único interesse é manter o status quo. Nesse sentido, a direção de arte está de parabéns ao nos mergulhar tanto na opulência da Capital quanto nos tristes ambientes do distrito natal da personagem principal.
É fascinante notar como as pessoas, não só da Capital, mas também de alguns distritos se encontram tão “vidradas” nos Jogos que nem sequer ousam questioná-los, inclusive se voltando exclusivamente para estes, algo que pode ser resumido no discurso de um dos participantes que diz que tudo o que sabe fazer é matar.
A competição é envolta em um glamour que atrai os abastados da elite e, como eles jamais são chamados para os jogos e mal interagem aqueles habitantes dos distritos, principalmente dos mais pobres e completamente subjulgados, é criada uma aura de distanciamento que permite a apreciação da brutalidade como diversão. Considerando também as riquezas prometidas ao vencedor da competição, esta acaba sendo vista como uma forma de ascensão social, uma forma de sair da miséria e se juntar aos ricos e privilegiados.
Quando a matança começa, vemos aqueles garotos se digladiando pelo simples direito de sobreviver, com Katniss e, por consequência, a plateia, sendo conduzida a um estado de confusão, ressaltada pela câmera na mão de Gary Ross e pela ausência de som que capturam estes momentos iniciais de carnificina, nos quais crianças são obrigadas a matar umas às outras e alianças questionáveis são feitas. No decorrer das lutas, o que causa mais tensão não é a violência per si, mas a expectativa desta, que pode irromper a qualquer hora, vinda de qualquer lugar.
O personagem de Woody Harrelson, Haymitch Abernathy, mentor de Katniss e outrora um vencedor dos Jogos, mostra exatamente o quão traumatizante a experiência pode ser. Alcoólatra e pessimista, Abernathy já viu crianças demais morrerem nos jogos e cometeu várias atrocidades para sobreviver, o que o permite perceber o que o evento realmente é.
Peeta Malark, compatriota de Katniss vivido por Josh Hutcherson, também acaba sofrendo em meio a essa situação, com seus sentimentos em relação à garota podendo ser encarados pelos demais competidores como uma fraqueza, mas também sendo uma vantagem junto aos patrocinadores e à audiência que, como em todo reality show, adoram um bom casal. Ademais, como quase todo o filme é mostrado pelo ponto de vista de Katniss, algumas das ações de Peeta ficam sem explicações explícitas, cabendo a nós interpretá-las.
“Jogos Vorazes” não é um filme perfeito. Os efeitos especiais em alguns momentos deixam a desejar, há um triângulo amoroso extremamente insosso e muito sobre o funcionamento da competição-título não é explicado, vide o funcionamento da arena (uma mistura de holodeck de “Jornada nas Estrelas – A Nova Geração” com o jogo “Sim City” e a Sala de Perigo de “X-Men”). No entanto, o carisma dos personagens, as boas interpretações do elenco principal e a complexidade das situações fazem com que nos importemos com o que vemos em cena e com o que virá depois.
“Mandei fazer; De puro aço luminoso um punhal; Para matar o meu amor e matei; Às cinco horas na avenida central; Mas as pessoas na sala de jantar; São ocupadas em nascer e morrer”. Trecho de “Panis et Circensis”, composição de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
___
Thiago Siqueira é crítico de cinema do CCR e participante fixo do RapaduraCast. Advogado por profissão e cinéfilo por natureza, é membro do CCR desde 2007. Formou-se em cursos de Crítica Cinematográfica e História e Estética do Cinema.