Apesar do apelo comercial, a mais nova fraquia adaptada dos livros começa de forma madura.
Não é de hoje que a indústria cinematográfica conhece e se aproveita do valor comercial proveniente da adaptação de uma grande série literária. Porém, só recentemente, esta busca por um lugar seguro no qual os estúdios possam se apoiar tem virado uma constante necessidade. Não é à toa que quase todo o marketing em torno de “Jogos Vorazes” pegou carona no sucesso das duas últimas franquias de maior bilheteria, vendendo-o como “o mais novo fenômeno mundial do cinema”.
Adaptado da obra literária de Suzanne Collins, a história se passa em um futuro pós-guerra, onde o país chamado Panem é dividido em 12 distritos. Para exercer seu controle e autoridade sobre as demais cidades, a Capital criou os Jogos Vorazes. Anualmente, no Dia da Colheita, cada distrito deve sortear dois jovens (um de cada sexo) para oferecer como Tributo. Estes jovens serão treinados para participarem de uma luta entre si até a morte, havendo apenas um vencedor. Este evento é transmitido em tempo real pela televisão para todo o país.
Apesar de pouco original, a premissa é interessante, pois abre espaço para criticar uma sociedade que se autoconsome, tendo como principal entretenimento a manipulação da própria vida de outras pessoas. Como não poderia deixar de ser em um blockbuster, este viés crítico não é o foco do filme. Mas ele se faz sempre presente, permeando toda a narrativa e tendo até certos momentos de maior atenção. Esta subtrama social, ainda que contida, apresenta-se em um grau maior do que o comum para filmes deste porte, com proposta comercial e público-alvo juvenil.
O caráter maduro em relação a outras produções do gênero é reflexo da competente direção de Gary Ross, que se preocupa em abordar o tema com mais dramaticidade e menos romantismo e pirotecnia. O primeiro ato é o melhor exemplo dessa atmosfera. Os personagens são apresentados pacientemente em suas ações rotineiras e só vamos conhecendo suas personalidades ao decorrer da trama. Os clichês, que precisam existir, são trabalhados de forma a integrá-los ao enredo ou à psicologia dos personagens, tornando-os menos incômodos. A trilha sonora de T-Bone Burnett e James Newton Howard se limita às breves sequências de transição, mantendo-se bastante sutil, o que fornece espaço para o silêncio nas cenas de maior importância dramática. Isso dá um tom sóbrio e realista ao longa que, pelo menos nesta primeira parte, não empurra o espectador para um tipo de reação emocional barata.
O clima inicial é transformado radicalmente quando somos apresentados aos consumidores do programa. As maquiagens e os figurinos bizarros desenhados por Judianna Makovsky remetem à artificialidade do povo da Capital. A extravagância e o colorido são contrastantes com os tons acinzentados da população menos favorecida. Os diretores de arte John Collins, Robert Fechtman e Paul Richards apostam em uma arquitetura simplista e quadrada dos cenários, como se tudo fosse construído apenas em função da praticidade, sem nenhum toque humano às decorações. Neste momento, percebemos o quanto aquela sociedade é produto e refém da velha e sempre atual política do “pão e circo”.
O elenco parece ter sido escolhido a dedo. De alguma forma, os atores e atrizes combinam muito com os personagens que interpretam. Grande parte disso é devido à bela caracterização, mas o maior mérito é das próprias atuações. E quando se fala em atuação neste filme, ninguém melhor do que a protagonista Jennifer Lawrence, que vive a dedicada Katniss Everdeen. Sua seriedade carrega uma carga dramática que nos faz lembrar constantemente de onde ela veio e o motivo de estar ali. Experiência e vulnerabilidade se equilibram na personagem, que sabe lidar com ambos sem exageros.
Josh Hutcherson também se destaca como Peeta Mellark, demonstrando uma insegurança acompanhada de integridade e conquistando sua importância na trama. Woody Harrelson está ótimo na pele de Haymitch Abernathy, mentor de Everdeen e Mellark, fazendo-nos lamentar por não ter mais tempo de tela. O veterano Stanley Tucci interpreta o apresentador Caesar Flickerman, explorando de forma divertida o semblante caricatural de seu personagem. Suas expressões físicas e verbais condizem com sua função de “animador” de todo aquele espetáculo, dando ao público o que ele quer. Wes Bentley também faz um bom trabalho, mas não apresenta toda a antipatia que seu personagem Seneca Crane pede enquanto “cabeça” dos Jogos, tornando-se carismático demais para o papel. Isso é compensado pelo experiente Donald Sutherland que, com a frieza e o distanciamento necessários, vive o presidente Snow.
Em tempos de reality shows, onde a exposição da intimidade, as máscaras sociais e os julgamentos pessoais chegam a definir nossa cultura, nada mais conveniente do que um filme que alfinete esses novos costumes justamente enquanto produto consumido pela nova geração. Apesar de seu marketing apelativo, “Jogos Vorazes” prova não subestimar o público, entregando-lhes um entretenimento de qualidade com abertura para reflexões mais ligadas ao nosso próprio contexto real.