Co-produção franco-belga indicada a dez estatuetas do Oscar preza pela nostalgia e qualidade em comédia romântica sobre o surgimento do cinema falado
Que a França foi o berço do Cinema, isso não há sombra de dúvida. Porém, foi nos EUA que a Sétima Arte deu os primeiros passos que a levaram em direção ao pote de ouro do chamado cinema clássico. No glamour de Hollywood, as produções mudas dos anos 20 conheceram astros como Rodolfo Valentino, Charles Chaplin e Louise Brooks.
A obra que melhor expressou a migração do silêncio ao som (inaugurada com “O Cantor de Jazz”, de 1929) foi, obviamente, o musical “Cantando na Chuva” (1952). Em “O Artista”, o praticamente desconhecido cineasta francês Michel Hazanavicius dirige e roteiriza uma grande homenagem às produções mudas daquele tempo. Em 1927, acompanhamos George Valentin (o ator francês Jean Dujardin) que, grande estrela do cinema, atua em filmes que misturam ação e romance, sendo sucesso garantido de público. Qualquer semelhança com o finado astro Rodolfo Valentino não é mera coincidência.
Junto ao seu fiel cachorro e coadjuvante nas películas, George é a máquina de fazer dinheiro da Kinograph Studios, chefiada pelo grande diretor do estúdio, Al Zimmer (John Goodman). Com um casamento em profunda crise com Doris (Penelope Ann Miller), o astro, durante a histeria de uma multidão de fãs, é fotografado junto de Peppy Miller (Bérénice Bejo) que, imediatamente, se torna alvo da imprensa. Aspirante a atriz, a jovem estreia em um filme ao lado de George e o rápido convívio dos dois faz nascer uma paixão mútua, mas que colocaria a carreira e o casamento do ator em maus lençóis.
Nesse ínterim, Peppy, rapidamente, ganha espaço na telona e, em 1929, com a eclosão do cinema falado, criando um conflito de interesses entre os dois: enquanto George, orgulhoso, decide preservar a arte muda e se recusa a falar em seus filmes, a atriz alça uma carreira incrivelmente repentina rumo ao som. A George resta o esquecimento, observando como mero espectador o estrelato da, agora estrela, Peppy Miller.
De forma surpreendente, “O Artista” conquistou a crítica norte-americana, não somente por homenagear o cinema ianque, mas também por resgatar de forma notável a aura das produções de uma época onde letreiros de diálogos dividiam espaço com atuações teatrais, dignas de forte expressionismo. E por conseguir se destacar na atual filmografia mundial, onde produções com explosões em ritmo de videoclipe e franquias multimilionárias monopolizam os grandes cinemas, o longa traz de volta a inocência de contar uma história onde intertextualidade e homenagem caminham juntas de forma primorosa. E o mais surpreendente: em um filme mudo.
Indicado a dez prêmios no Oscar, incluindo Filme, Diretor, Ator, Atriz e Roteiro, “O Artista” se destaca, justamente, por reciclar todos os clichês do gênero de forma leve, sem maiores pretensões. Irônico, levando em conta que esses mesmos clichês eram a grande novidade quando o cinema começou a caminhar com as próprias pernas e, claro, não teriam caído no lugar comum das produções se não fossem constantemente utilizados com o passar do tempo, Hazanavicius dá uma volta de 360 graus para utilizar esses mesmos recursos “batidos” em uma obra, digamos, clássica. Simples e inteligente, para dizer o mínimo.
Com leveza e inocência – nem tão puros assim – a obra oferece aos saudosistas de plantão um filme suave que, mesmo em momentos de drama intenso, não perde o fio da meada e nem a atenção do espectador. Os responsáveis por tal louvor são inúmeros: a sensualidade, o talento e o carisma de Jean Dujardin e seu bigode à la Errol Flynn (astro de filmes de ação dos anos 30, 40 e 50); a doçura, o despojamento e a beleza convencional de Berenice Bejo; a direção de arte impecável que nos coloca diante da Era de Ouro do cinema hollywoodiano como se fosse ontem; a trilha estonteante e milimétrica de Ludovic Bource que cai como uma luva durante os exatos 100 minutos de projeção; e por aí vai.
Com cenas que já devem ficar cravadas na memória do público (como esquecer Peppy Miller vestindo o paletó de George em um jogo de cena quase lúdico ou o pesadelo do astro em um medo psicossomático de, simplesmente, pronunciar as palavras?) temos a nítida sensação de estarmos em uma sessão de uma comédia romântica, literalmente, feita à moda antiga. Por outro lado, “O Artista” ainda cutuca a ferida do amargo gosto do ostracismo experimentado pelos astros do então cinema mudo. Afinal, nem só de sonho bom sobrevive a sala escura. E com os trunfos do som vieram, também, as consequências, em que outra obra explicitou de forma magistral: “Crepúsculo dos Deuses”, de 1950.
De charme e delicadeza louváveis, o longa traz, ainda, presenças ilustres de atores em papéis menores, como James Cromwell como o fiel motorista Clifton e a ponta de um irreconhecível Malcolm McDowell (automaticamente lembrado por seu papel em “Laranja Mecânica”). Porém, o filme é mesmo de Jean Dujardin, que entrega um personagem capaz de emocionar em todo seu silêncio e encantar em cheio com seu carisma. Extremamente expressivo, o ator francês consegue, ainda, mostrar o peso dos anos de esquecimento em seu olhar e físico, em um conjunto que rendeu a indicação ao Oscar e ao Bafta, além de já ter levado para casa os prêmios de Melhor Ator em Cannes, no Globo de Ouro e no Screen Actor Guild (SAG). E, diante de tantos méritos, “O Artista” comprova que uma imagem pode, realmente, valer mais do que mil palavras; especialmente em se tratando de cinema, capaz de unir franceses e americanos, lendários por suas divergências. That’s la vie.
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Léo Freitas formou-se em Jornalismo em 2008 pela Universidade Anhembi Morumbi. Cinéfilo desde a adolescência e apaixonado por cinema europeu, escreve sobre cinema desde 2009. Atualmente é correspondente do CCR em São Paulo e desejaria que o dia tivesse 72 horas para consumir tudo que a capital paulista oferece culturalmente.